Por Helkein Filosofia
São Bernardo de Claraval, em seu Os Graus da Humildade e da Soberba, comenta que o caminho que leva uma pessoa à destruição de si através do pecado consiste como que n’uma escada em que se desce, gradativamente, da dignidade de homem à condição de besta, percurso composto de doze estágios cujo primeiro refere-se à curiosidade desmedida: Primus itaque superbia gradus est curiositas. A curiositas enquanto primeiro estágio do percurso do soberbo significa, no aspecto que desejamos reter, em cuidar antes do problema alheio do que de seus dos próprios. S. Bernardo frisa, cuidadosamente, que ela é antes a manifestação de uma doença instalada na alma [anima morbus deprehenditur] do que sua causa e, assim posto, se torna fácil relacionar o pensamento bernardiano ao versículo bíblico: “Porque vês tu a aresta no olho do teu irmão, e não notas a trave que tens no teu?”. [Lc. 6:39]
A filosofia têm sido frequentemente tratada, como dito por Cícero[1] na medida em que segue a tradição iniciada por Platão e suas analogias médicas, como espécie de remédio ou nutriente para a alma e, nesse sentido, refere-se ao que há de mais íntimo no homem, algo reflexo no tão famoso γνῶθι σεαυτόν, aforismo que serve de símbolo para certo movimento interno atrelado antes ao ser do que ao parecer e encarnado fielmente por Sócrates, personificação do filósofo que responsabilizou-se pelas verdades que enunciou até as últimas consequência por ter crido nelas do fundo de sua alma — e a ponto de achar um esquife mais aconchegante do que a cama macia que teria recebido após apostatar de sua vocação. Inverso ao filósofo é o filodoxo: caso não haja verdades então não há problema algum em renunciar, por tal ou qual motivo, àquilo que se crê mesmo que não se descreia. Na ausência de parâmetros objetivos não há como condenar aquele que consegue a [van]glória através da apostasia da mesma forma que não há como imputar aquele que impuser-se através da força, pois neste contexto o justo ter-se-á transmutado de descoberto em valorado: justo será o impostor, o homem que possui o anel de Giges.[2]
Verdade descrida, verdade destituída. Caso a verdade perca suas vestes, usa-las-á a opinião; e, neste sentido, é possível entender o motivo de o conhecimento ter sido, até pouco tempo atrás, tratado como modalidade de crença — algo que faria com que Platão, a quem normalmente se atribui a pecha, revirar-se no túmulo, em especial se atentarmos que, em A República [479d-480a], o velho filósofo conclui que aquele que perde-se na multiplicidade da doxa em vez de contemplar a unidade da verdade é antes o philodoxos do que o philosophos.
O que devemos reter, aqui, é que da mesma forma que os filodoxos “se perdem no que é múltiplo e variável”[3] o desmedidamente curioso perde-se na multiplicidade do alheio e, infelizmente, o estudante de filosofia contemporâneo[4] tende a estar mais interessado em curiosidades de teor filosófico do que, strictu sensu, em filosofia. Assim o digo pois o que se verifica é antes a predominância da vontade de saber quem refutou quem, quem disse isso ou aquilo, quem resolveu o que ou coisa assim, i.e., preocupação antes com resultados e miudezas ou informações biográficas questionáveis (qual a altura de Kant? Leibniz morreu virgem? Descartes teve relações sexuais com a empregada?) do que com questões, tais quais sua origem, desenvolvimento, resultados e conseqüências. Em suma, quer-se comer o bolo sem entender como assá-lo e, com isso, considerar-se tão apto enquanto cozinheiro. Em A Filosofia a Partir de seus Problemas encontramos uma longa exortação acerca da necessidade de se conhecer o contexto dos problemas que geraram questões filosóficas na medida em que cada uma delas precisa de uma razão de ser; não são mera especulação acadêmica, como hipóteses erigidas para mero experimento mental, mas tentativas de resolução de complicações de teor existencial. De fato, após certa aquisição de um aparato basilar que sirva de estofo para que o estudante possa pensar os problemas, uma cultura filosófica,[5] o estudo da filosofia torna-se análogo a compreender o resultado de uma equação após entender o procedimento que o conclui; mas o mero curioso filosófico, interessado apenas no resultado, procede como o sujeito que cola numa prova e a entrega para o professor, com um sorriso no rosto, crente de que o que fez foi o suficiente para passar de ano.
A atenção desmedida à multiplicidade das miudezas, companheira indelével do acúmulo de teses soltas, comumente consequência de um estudo temático e versão vulgar da coletânea de letras chamada por Platão de doxosofia, é o hábito vicioso que gera o politeísmo opinativo, certa confusão mental generalizada que impede que se encontre o fio de ariadne em meio à multidão da efeméride. Como ajudar aquele que, esperando seguir o caminho da filosofia, seguiu, por engano, o de sua contraparte? A resposta socrática consiste na demolição das opiniões errôneas para que, uma vez limpo o terreno, seja possível construir, sobre fundamentos sólidos, algo de novo. A idéia é boa e, de fato, funcional em casos restritos, mas em nosso tempo a pars destruens do método socrático torna-se inviável enquanto solução de conscientização do estudante que perdeu-se no turbilhão da doxa pois exigiria uma refutação mais ou menos metódica de cada um dos autores anarquicamente lidos, algo cuja possibilidade jaz para além da capacidade do melhor dos retóricos. Depreende-se assim, retornando ao tema da filosofia enquanto terapia espiritual, o seguinte problema: como exortar aquele que se perdeu, quiçá por conta de uma boa dose de imediatismo a tomar parte numa disciplina quasi-ascética de reforma do próprio espírito? Como exortá-lo ao estudo silencioso e à renúncia da ‘glória’ de ‘vencer’ debates em círculos duvidosos? Como livrar deste problema aqueles que, seduzidos pela curiositas e guiados por suas companheiras, tendem a ser
[…] coléricos e destemperados, geralmente cedendo aos seus ímpetos […] Amam as honras, mas ainda mais a vitória, pois a juventude é ávida de superioridade, e a vitória constitui um tipo de superioridade. […] amam com excesso, odeiam com excesso e sua postura em todas as situações é excessiva. Julgam-se oniscientes e sustentam muito convictamente suas opiniões, o que representa ainda uma das razões de seus excessos em tudo.
Sócrates, ao lidar com o mesmo problema no Górgias de Platão, verificou que Cálicles – e também seu colega Polo – era inapto ao aprendizado da filosofia devido ao espírito de querela que jazia na comorbidade de sua alma, assumindo então uma postura metódicamente irônica afim de que a corrosão das afirmações de seu interlocutor fizesse com que este tomasse consciência de seus erros e, assim, pudesse receber o ensinamento filosófico desde o início, não visando, segundo a analogia referente a Elêusis, [Górgias 497c] os grandes mistérios [teses metafísicas] mas antes do entendimento dos pequenos [o notar da própria ignorância]. Há de se notar que sempre voltamos a um ponto em comum: o conhecimento de si e da percepção de que nossos erros advieram de nossos vícios. Transportando o caso socrático para nosso tempo, talvez Cálicles, após discutir com o velho filósofo, decidisse antes xingá-lo numa rede social – ou exibir alguma pseudo-erudição através de escritos exaustivamente referenciados numa tentativa de esconder, por trás das letras, um orgulho ferido – do que emendar-se e, infelizmente, foi uma atitude análoga a esta que levou Sócrates ao tribunal. Entretanto, àqueles que percebem que se deve abandonar o grau da soberba em prol do amor à sabedoria, é crível que a observação do exemplo dos filósofos seja um bom remédio, tendo em vista que sabemos, quasi-instintivamente, que não pode uma árvore boa dar maus frutos, nem uma árvore má dar bons frutos [Mt. 7:17].
Ut per rivulos, non statim, in mare eligas introire: quia per faciliora ad difficiliora oportet devenire. Haec est ergo monitio mea, et instructio tua.
Sto. Tomás de Aquino
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Notas:
[1] Tusculanas III – IV.11
[2] E, assim, está livre dos olhos dos deuses – implicando que haja algum deus, tendo em vista que os filodoxos posteriores farão com que o divino seja excluso in limine da discussão [sic] filosófica (Ver O Drama do Humanismo Ateu, introdução) –; e, assim, Nietzsche e Trasímaco deram as mãos.
[3] Rep. 484b
[4] Mas não apenas ele, dado que o jovem sempre foi o que é.
[5]“A cultura filosófica compõe-se de três coisas: (a) conhecer a bibliografia filosófica e lê-la na máxima extensão possível; (b) dominar a técnica da análise de textos, para ter a certeza de que se compreende o que se lê; (c) conhecer a história da filosofia, as escolas filosóficas na sua cronologia e nas relações que têm umas com as outras.” A Filosofia e seu Inverso p.132
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