por Louis Lavelle
Tradução de Johann Alves
Este pequeno tratado que apresentamos ao leitor contém um estudo sistemático das qualidades sensíveis: seu tema corresponde ao capítulo sobre as sensações em qualquer curso de psicologia. Mas constitui uma primeira aplicação de um método mais geral, cujos fundamentos são os seguintes.[1]
A noção do ser puro é o objeto primitivo da meditação filosófica. Entretanto, parece ou que tal noção é inacessível como sustenta o fenomenismo, ou que possui um caráter geral e vazio; a afirmação da existência seria então uma afirmação indeterminada, sem dúvida implícita em todo o conhecimento, mas imprópria para constituir qualquer conhecimento particular. Não haveria uma espécie de contradição em querer conhecer o ser daquilo que é antes mesmo das formas particulares que assume, ou o próprio poder da afirmação independentemente das relações que ela coloca?
Na verdade, nenhuma doutrina pode evitar a noção de ser absoluto, não porque o mundo das aparências pressupõe um mundo real do qual ele é a imagem, mas porque as aparências como tais possuem ser da mesma forma que as coisas que por vezes colocamos por detrás delas. Pois se de um lado existe uma linha de demarcação mais rigorosa entre o ser e o nada, por outro, não há graus de ser: podemos conceber entre os objetos todas as diferenças possíveis quanto à riqueza e quanto à dignidade; mas a noção de existência é unívoca[2]: é no mesmo sentido e com a mesma força que convém tanto ao sujeito quanto ao objeto, à consequência e ao princípio, à sombra e ao corpo. Assim, ao sustentar que nosso conhecimento é apenas um tecido de relações, somos obrigados a admitir que todo este mundo relativo, mesmo que seja impossível ir além dele ou que não seja duplicado por nenhum outro, não tem uma existência diminuta em comparação a um mundo permanente e imóvel; se é frágil e variável, estes são elementos da sua compreensão; e uma vez definidos, a existência deve lhe ser atribuída: e só lhe pode ser atribuída em sua plenitude. Nada se ganha ao querer considerá-lo como um momento instável na evolução de um pensamento. Pois este pensamento fugaz, no entanto, participa da simples existência como um todo em que é colocado. As noções de possibilidade e necessidade permitem que a existência subsista sem empobrecê-la ou aumentá-la; elas determinam seu objeto: o possível é a existência de um termo puramente pensado e o necessário é a existência de uma relação lógica entre dois termos quaisquer.[3]
Desta forma, a existência supera a oposição clássica entre o sujeito e o objeto; e longe de corresponder apenas à afirmação da presença de um objeto em nosso pensamento, ela se volta contra o próprio pensamento a fim de fundamentá-lo. E mesmo que ela só seja apreendida por um conhecimento, é impossível dar-lhe um caráter puramente representativo: pois ela mesma confere a este conhecimento, ao contrário, um lugar no mundo como seu objeto. Podemos conceber múltiplos aspectos da existência, mas não muitas formas de existir. Antes mesmo de qualquer qualificação, a existência é o termo cujo nossa inteligência enfrenta desde o primeiro dos seus processos. Na verdade, a própria noção de sujeito a determina e, por consequência, também a supõe. Ela é para a inteligência um nó no qual envolve a si mesma. Não é apenas um termo privilegiado em uma cadeia de elementos aos quais se chamariam uns aos outros; porque a ideia de existência possui ela mesma existência, ela forma um círculo tal donde todo nosso conhecimento irradia e para o qual ele converge a fim de testar sua realidade. É porque a ideia de uma ideia ainda é uma ideia que toda ideia nos entrega imediatamente a sua essência intelectual; e é porque, para ser uma ideia, a ideia de uma existência é ela mesma uma existência que nos é dada como uma coisa e não apenas como a efígie de uma coisa.
O significado do Cogito Cartesiano é fornecer a primeira e, de acordo o idealismo, a única determinação inteligível da existência pura. Mas o pensamento, ao descobrir sua própria existência, descobre a existência geral do qual ela é uma limitação; e o princípio pelo qual ela se coloca é transcendente em relação a ela.[4]
A existência parece então ser uma noção universal, mas estéril, que pode ser aplicada indiferentemente a todos os termos definidos, mas que em si mesma é objeto de um juízo tautológico semelhante àquele formulado pelos eleatas.[5] Ainda admitiríamos que o trabalho do conhecimento a pressupõe, mas sob a condição de que a ultrapasse imediatamente. Os conflitos de doutrina só começam, de fato, quando se quer determinar a natureza dos objetos aos quais ela convém.
No entanto, se a considerarmos em sua pureza e em sua universalidade, a existência não é abstrata. Muito pelo contrário, é ela que faz de todos os termos aos quais se aplica seres concretos e não meras definições. É a “concretude” tomada isoladamente. É por uma figura de linguagem que consideramos como abstrata a ideia adequada ao concreto. O círculo no qual se envolvem a existência e sua ideia prova, ao contrário, que ela é estranha à abstração, e que tal abstração não pode ser anterior à oposição do espírito às coisas. Além disso, a própria existência do abstrato no espírito, enquanto tal, força-nos a superar o próprio abstrato, a fim de colocar o ser absoluto, não importa qual seja o conhecimento tendencioso que se tente adotar para evitá-lo. Do próprio limiar do conhecimento encontramos, portanto, algo que é inseparável de sua noção, ou seja, uma intuição intelectual, e, de fato, trata-se menos de uma coisa do que do princípio que faz todas as coisas serem coisas. Mas o próprio caráter desta intuição, ou seja, a impossibilidade de estabelecer uma diferença entre a apreensão e o que ela apreende, nos leva a admitir que a existência é identificada com a própria inteligência considerada em seu ato fundamental. E se se difere dela, é porque podemos considerar alternadamente num mesmo termo o ato pelo qual ele é colocado e o fato de ele ser colocado. Se formos pressionados pela alegação de que implicitamente damos uma existência ao sujeito cujo papel é precisamente colocá-la, responderemos não apenas que encontramos aqui novamente o círculo característico de toda intuição primitiva, mas que toda a realidade do sujeito consiste, de fato, num ato e que ele participa da existência somente através da sua realização.
Se não há nenhum termo ao qual a existência não possa ser atribuída depois de ter sido corretamente qualificada, é fácil ver como a sua extensão é infinita. Mas concluímos, então, aplicando um famoso axioma lógico, que ela não pode ter nenhuma compreensão. Isto seria verdadeiro se o ser fosse uma noção puramente lógica, o gênero mais geral. Agora, se é somente por sua participação no ser que cada termo adquire o direito de estar situado no universo, como não podemos considerar a sua compreensão como uma limitação do ser puro? Quando definimos um ser particular, voluntariamente esquecemos o elo que o conecta ao absoluto e consideramos apenas suas propriedades: assim, fazemos dele um fenômeno. Na realidade, o seu ser é constituído pelo conjunto das suas propriedades, por aquelas que conhecemos e por aquelas que ignoramos. É apenas importante notar que não convém ao entendimento criá-las: ele as encontra; admite que elas são primitivamente colocadas: e sob este aspecto, o ser é o conhecimento consumado antes mesmo delas serem chamadas à existência, e pelo qual elas o podem ser. Mas é somente no final do conhecimento discursivo que o ser pode aparecer na forma de uma soma: antes das operações do entendimento, o ser é uma unidade ativa; é o todo, ou seja, um termo cuja a compreensão e a extensão se confundem. Após o conhecimento, o ser torna-se um total, isto é, um termo com o qual o conhecimento é construído, que permanece uma multiplicidade de determinações e cuja fenomenalidade marca a lacuna que separa a sua essência do conhecimento que dele adquirimos. Através de uma série de etapas o entendimento tende a alcançar, sem nunca conseguir fazê-lo, o ato pelo qual o pensamento teve de pôr, a fim de colocar si mesmo, o todo no qual, desde seu primeiro passo, insere seu ser circunscrito.
Entretanto, diz-se que um objeto existe quando o circunscrevemos para pensá-lo tomado em si mesmo, independentemente das relações que o une a todos os objetos vizinhos. Assim que queremos saber não sua existência, mas sua natureza, seguimos outro caminho: procuramos ou as causas que o determinam, ou os elementos que o compõe; desta forma, ele abandona sua independência e temos a impressão de que sua existência absoluta se perde no jogo das relações. Se for assim, a existência se aplica imediatamente à totalidade do mundo, mas somente as suas partes através da análise que as distinguem umas das outras e determina com extremo rigor os seus limites mútuos. A unidade do pensamento será manifestada pela simplicidade do ato característico da análise; mas ao se aplicar à totalidade do ser concreto dado primitivamente, este simples ato testemunhará uma fecundidade inesgotável: gerará a variedade de todas as formas particulares de existência. Na identidade ativa através da qual o pensamento distingue um termo qualquer de todos os outros, a diversidade de todas as distinções realizadas encontra-se de algum modo expressa eminentemente. E poderia ser de outra forma se é por este ato que a independência dos termos é colocada, ou seja, aquele caráter de individualização que dá a cada um deles um lugar único no universo?[6]
Mas assim que nosso pensamento, necessariamente unido ao absoluto, ou toma consciência da sua própria existência ou se depara com o todo que o transborda, empreende o processo analítico pelo qual, explorando o todo, tenta reduzir a sua diversidade à diversidade das suas próprias operações, une então a uma só vez o sensível às ideias que lhe fundamentam e explicam. E como a análise nunca consegue esgotar o real, ela só revelará sua eficácia se cada uma das suas operações for acompanhada por uma intuição qualitativa distinta. Assim, não se dirá que o sensível realiza ou simboliza a ideia após a sua junção duplicando-a de forma ininteligível; ele está ligado à sua essência como um ato de determinação está ligado ao objeto que determina, mas que testemunha, em relação a ela, uma compreensão ainda mais rica. A qualidade expressa, na linguagem da sensibilidade, o ato intelectual pelo qual sua existência é colocada: mas na medida em que a manifesta ao ultrapassá-la, é ela mesma o objeto de uma ideia: a ideia do indeterminado é totalmente determinada. Consequentemente, o dado, e mesmo toda qualidade, encontrará um lugar no sistema das noções.
É evidente que não é através das próprias operações que realiza que o nosso espírito atesta sua imperfeição: é pelo que lhe resiste, pela incompletude necessária de todo conhecimento discursivo. Mas na criação das ideias, o ser finito encontra a sua personalidade espiritual, e por sua participação no princípio comum da inteligibilidade e da existência, torna-se capaz de se comunicar com outros seres finitos. Entretanto, na medida em que ele deve permanecer passivo em relação às próprias ideias que criou, o espaço pensado necessariamente se apresenta a ele sob a forma de uma cor, e a força lhe é revelada pela sensação de um músculo que se contraí.
Entretanto, se limitássemos a nós mesmos, como faz o empirismo, a partir dos dados dos sentidos para descrevê-los, não poderíamos alcançar uma teoria explicativa da realidade; pois, por um lado, não entenderíamos por que a distinção é o ato essencial do pensamento e, por outro, qualquer distinção teria necessariamente um caráter artificial e pragmático. Porém, que a noção de existência seja primitiva, que as condições em que tomamos consciência do nosso ser finito nos obrigam a opor-nos ao todo do qual fazemos parte, e consequentemente, a ligar cada ato do pensamento a um dado que o limita e o expressa, estes são os princípios de uma interpretação geral do mundo das aparências, ou seja, de uma doutrina do composto. Pois a característica do composto é associar de forma tão íntima as operações do espírito e os dados dos sentidos que não podemos mais conceber, mesmo idealmente, a sua separação.
Agora, compreendemos facilmente que as noções fundamentais de uma teoria da matéria dependem exclusivamente da maneira pela qual o todo, ao se oferecer de fora para limitar nosso pensamento dando-lhe um ponto de aplicação, deixa-se ser penetrado por ele. Estas noções podem ser chamadas puras porque são uma determinação imediata da noção de existência tal como ela se manifesta aos olhos de um ser finito. Mas a qualidade, ao recobrir o dado, confere à nossa passividade a plenitude concreta de todas as determinações, e a dialética nos permite encontrar nela uma expressão da diversidade das noções pelas quais o entendimento analisa as condições individuais de uma experiência do mundo.
Se considerarmos toda existência como uma distinção efetuada e que, em sua realidade formal, se confunde necessariamente com o ato pelo qual o espírito as concebe, entenderemos o porquê que a existência pura e o pensamento puro devem ser identificados desde o princípio, e como, uma vez que a existência do pensamento está inscrita nas próprias coisas à medida em que elas são colocadas, o universo tem um caráter de inteligibilidade soberano. Os próprios limites que a nossa mente encontra ao realizar o seu trabalho de análise recebem um caráter inteligível no sistema total das existências finitas. Mas também será argumentado que cada um desses atos do pensamento tem um caráter abstrato e vazio; isto seria verdade e nos levaria a rejeitar o método analítico se ele não fosse inseparável de uma intuição dupla, ou seja, primeiro, da intuição pela qual apreendemos este ato no momento em que ele é exercido e através do seu próprio exercício, de forma que seja impossível distinguir este exercício da consciência que o acompanha e, em segundo lugar, de uma intuição sensível que nos parece menos uma matéria dada à princípio, na qual as distinções seriam feitas, do que o conteúdo e a expressão afetiva de um ato de distinção já realizado. É a solidariedade destas duas formas de intuição que funda o caráter de toda reflexão, tanto intelectualista quanto realista. O método da filosofia nos parece ser, como pensava Lachelier (Fondement de l’induction, p. 14), “buscar a origem do nosso conhecimento em um ou mais atos concretos e singulares através dos quais o pensamento se constitui a si mesmo ao apreender imediatamente a realidade”.[7] De fato, cada uma das noções fundamentais pelas quais se expressa a comunicação de um ser finito e o todo no qual ele está situado é, em si mesmo, um ato determinado da mente. Como que o espaço, considerado como a exterioridade recíproca dos lugares, poderia ter menos realidade do que a cor que o cobre e o torna presente para os sentidos? Como que o tempo, que é a própria ordem segundo a qual nossa vida subjetiva se desenvolve, poderia ser abstrato em relação ao ritmo das sensações auditivas que o preenchem e manifestam sua irreversibilidade? Os atos que realizamos e que possuem plena objetividade formam um elemento do universo inteligível: mas nunca esgotarão toda a sua realidade; por outro lado, as intuições sensíveis, cuja confusão é o preço da sua riqueza infinita, trazem ao nosso alcance a realização ideal das determinações inteligíveis pelas quais os objetos particulares seriam chamados à existência. Observa-se, no entanto, que o sensível conserva em si mesmo o direito de toda sua originalidade, pois uma vez extinta, em vez de dar à matéria um caráter de distinção perfeita, faria com que ela desaparecesse.
Vale ressaltar também que cada noção tem, como a própria existência, uma aplicação universal, que ela expressa portanto, um aspecto privilegiado da totalidade do mundo, que o ato que a caracteriza é suscetível de uma renovação indefinida, e que é por esta razão que por vezes é considerado como um princípio de possibilidade e não como um princípio de realidade. Mas se é necessário efetivamente continuar a realizar cada um desses atos sem nunca suspender sua aplicação para expressar a natureza do todo, poderíamos dizer que o sensível que o ilustra é acrescentado a ele a fim de realizá-lo? Não deveríamos admitir, pelo contrário, que ele é o fundamento do sensível, que os atos do espírito são a substância das coisas e que sem eles a matéria não poderia nem ser pensada e nem subsistir?
O erro fundamental do idealismo nos parece ter sido tomar como ponto de partida do conhecimento a noção do eu e não a de existência. Sem dúvida, a existência se apresenta a nós necessariamente de dentro e sobre uma forma subjetiva: por isso é uma intuição e não um fenômeno. Mas a subjetividade não é a individuação: o pensamento é dado antes do meu pensamento para que o meu próprio pensamento que o limita seja possível. E se quiséssemos usar símbolos materiais, diríamos que todo o espaço também é dado antes do meu corpo para que ele possa ocupar um lugar. O ato pelo qual reconheço ou os limites do meu corpo no espaço, ou os limites do eu individual na subjetividade essencial da qual ele se desprende, é tardio, estranho à nossa vida mais espontânea e que não podemos realizar sem unir imediatamente, através de um sistema de relações, o indivíduo que acabamos de libertar com o todo do qual ele retira seu ser.
Se a análise é coagida a partir não de um todo abstrato, mas do ser concreto dado com a plenitude[8] das suas determinações, não somos levados a supor de forma verbal uma inteligibilidade realizada antes mesmo dos próprios atos que deveriam produzi-la? Isto só seria verdade se a existência primitiva fosse inerte e bruta e se o pensamento vivo fosse um privilégio do indivíduo. Mas a inteligibilidade aparece para nós de fora e inscrita nas coisas precisamente porque a encontramos em vez de criá-la, porque o nosso entendimento finito é incapaz de esgotar através dos seus próprios atos a natureza da realidade. Ele deve descobrir cuidadosamente suas articulações essenciais: a objetividade de cada uma das suas operações deve ser expressa por uma intuição sensível e, ao mesmo tempo, essa intuição que a anima recebe a luz que a ilumina. Não temos melhor garantia do nosso método do que esta concordância incessante que deve ocorrer em cada etapa da pesquisa intelectual entre o ato do pensamento e os dados pelos quais, passivos em relação a este mesmo ato, alcançamos o absoluto da qualidade que os expressam ao excedê-los. A qualidade encerra a série de etapas dialéticas sobre o ser total, dando-lhe uma vida plena para nossa sensibilidade, mas de uma forma confusa e dividida. Gostaríamos também de ressaltar a dupla humildade que se manifesta na obra do entendimento, uma vez que, desafiando toda ambição construtiva e criativa, apenas pretende analisar o real, e como é certo que esta análise nunca pode ser exaustiva, solicita a heterogeneidade de qualidades para fazer uma imagem corresponder a cada um dos atos que realiza.
É evidente que o todo só pode ser conhecido através da revelação ordenada de seus diferentes aspectos. No entanto, a análise que estamos empreendendo é uma análise pura. Ao invés de supor o sensível, ela o explica: fundamenta a sua originalidade e a sua variedade. Na criação do mundo por Deus, não deveríamos ver nada mais do que uma manifestação dos diferentes atributos da sua natureza, de forma proporcional à nossa inteligência finita? A análise do sensível é assim a expressão e contraprova da análise intelectual pela qual o sujeito, opondo-se ao todo, descobre as formas essenciais de toda a comunicação possível para com ele. Embora esta análise seja progressiva, a ordem em si não tem nenhuma virtude generativa, especialmente se, em cada um dos termos da análise, a totalidade das coisas é necessariamente representada: a própria ideia de seres particulares abraça sua universalidade. Isto deve ser verdadeiro se o ser só pode ser apreendido por uma intuição e nunca por um raciocínio. O ser está totalmente presente em cada fase da dialética. Agora, o tempo é tanto um elemento da dedução como um meio sem o qual ela não seria possível. O tempo é a lei que permite aos indivíduos conquistar sua independência espiritual, de entrar em uma relação com o universo e de definir sua originalidade através da própria ordem dos eventos que preenchem suas vidas.
Assim, a simultaneidade das intuições sensíveis e das intuições intelectuais confirma o caráter cíclico da ordem que deve ser estabelecida entre todos os elementos da realidade. A direção primitiva de cada abordagem e o sentido que ela adota para atravessar as diferentes partes do todo, permite a cada inteligência definir as suas próprias características e que a diversidade dos sistemas filosóficos surja. Mas todos sabem que o valor de um pensamento reside na penetração e na força com que ele percebe a essência íntima da realidade dada na mais pobre das suas manifestações, através da estreiteza e da amplitude com que ele apreende ao mesmo tempo a unidade e a diversidade de todas as formas que o ser pode assumir diante dos seus olhos. O valor de um método está subordinado ao seu sucesso, ou seja, ao vigor das mãos que o utilizam. Entretanto, nenhum intento metafísico pode supor ter sucesso se espera que um progresso no tempo enriqueça a noção de ser, ou ainda que a faça brotar misteriosamente de um termo que não a pressuponha.
Em resumo, consideramos toda a realidade como dada e não partimos de nenhum dado privilegiado a fim de reconstruir tudo o mais através dele: a qualidade é dada como o ser, igualmente a ele e junto a ele. Mas o ser puro só pode ser apreendido em si mesmo pela intuição — e de que outra forma poderia ser? — sob condição de ser confundido com o ato característico da inteligência. A inteligência do ser finito é uma inteligência de participação: ela é necessariamente exercida no tempo. Portanto, procura introduzir uma ordem no conjunto dos dados. No entanto, este mesmo intento pressupõe que nossos estados passivos encontrem o seu fundamento em certos atos do pensamento que os expressam: assim, não podemos perceber a cor sem o espaço que ela determina, mas podemos pensar o um espaço sem cor. Consequentemente, os atos do pensamento não são menos concretos do que os fenômenos que os expressam. E uma vez que não podemos deixar de colocar primeiro o todo para dar conta da diversidade de seus aspectos, a análise, ou seja, a distinção, será o instrumento fundamental do método: tal análise é tanto lógica quanto descritiva. A aplicação do método intelectualista, levado até as últimas consequências, deve nos conduzir à sensação: a ordenação das noções é suficiente para explicar o porquê de o entendimento encontrar nela um limite ininteligível, porém ela está necessariamente ligada a um ato da inteligência que lhe dá uma espécie de realização e de símbolo na linguagem da sensibilidade. O circuito que vai do dado à qualidade representa o campo dentro do qual o indivíduo exerce, pelo intermédio do tempo, aquela forma original de atividade intelectual que, uma vez separado do ser puro, lhe permite finalmente reencontrá-lo depois de tê-lo colocado ao alcance de sua natureza finita.
Assim, a inteligência é um geômetra como a luz; etapa por etapa, ela desenha limites no caos da ignorância original: introduz em todos os lugares linhas fixas que circunscrevem e determinam. É também o efeito da luz separar os planos e dividir as superfícies com linhas de sombra tão estreitas e afiadas que evocam a obra de um espírito puro. Mas não parece que a matéria é tocada pela luz sem ser penetrada por ela, que a distinção não lhe pertence propriamente e que está sempre perto de separar-se dela? E da mesma forma, a ciência do homem não é passível de se obscurecer? As superfícies que recebem a luz absorvem-na, refletem-na ou dispersam-na; mas elas têm para o olho uma espécie de leveza irreal como a própria luz; vemos apenas as diferenças visíveis, ou seja, diferenças de brilho e de cor. Entretanto, a parte do mundo que não vemos é homogênea àquela que vemos: podemos imaginar uma luz mais penetrante do que aquela que nos ilumina, um olhar mais aguçado do que o nosso, e que, para além da superfície, alcançaria o próprio interior das coisas e não deixaria escapar nenhum elemento. Esta é precisamente a relação que existe entre o ser real, ou seja, a inteligibilidade pura, e a inteligibilidade que um entendimento finito realmente introduz no mundo das aparências.
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Bônus: Recomendações de leitura ao interessado em Louis Lavelle.
por Helkein Filosofia
Comentário: Louis Lavelle pode ser visto como estranho a seu tempo: em um mundo prestes a afundar-se ou no niilismo ou em seus parentes, o filósofo resolveu tomar a direção inversa e fazer metafísica. O desespero, que alimenta tantos tipos de pensamento, nasce da constatação do abismo sob os pés; uma queda constante, um devir cruel, i.e, uma sensação de que nada há senão o caos que, uma vez camuflado por nossas elucubrações, volta do princípio dos tempos para nos pegar. Mas se é assim, o que a filosofia pode fazer? Ela pode fornecer bases fixas e certas, o regramento da realidade que nos mostra que o caos está antes em nossa incapacidade de compreender a ordem. O que o desesperado precisa não é constatar sua miséria e permanecer nela; ele não precisa amar sua miséria, amar seu estado decaído e crer que suportaria, impávido, um destino em que tudo se repetisse eternamente ou que fôssemos meros entes atirados no ser; o que ele [o desesperado] precisa é do instrumento final da filosofia: a disciplina do ser enquanto ser. Não sei se Lavelle pensou assim, mas o dado é que agiu como se tivesse — e talvez também por isso tenha se tornado um autor tão querido. Forneço aqui algumas sugestões de leitura ao interessado naquele que por vezes foi chamado de Platão do sec. XX.
Urge que sigamos a sugestão do autor e leiamos seus escritos populares. Sendo assim, em primeiro lugar, creio que a melhor porta de entrada seja o magnífico A Consciência de si; logo em seguida vem o tão necessário O Mal e o Sofrimento e então talvez um dos livros mais estranhos a seu tempo que saíram da pena de nosso filósofo, O Erro de Narciso. Resta então, quanto aos escritos populares disponíveis em português, a coletânea de artigos Ciência Estética Metafísica, um livro misto, dado que seu conteúdo pode, em linguagem jovem, “ir de zero a 100 muito rápido” e passar de uma simples resenha a um comentário de física quântica. Deixo o Regras da Vida Cotidiana a critério do leitor, dado que o livro é constituído de anotações que o filósofo não pretendia publicar.
Creio que todos os livros sugeridos sejam de leitura livre, i.e., podem ser lidos a qualquer momento sem que exijam muito mais do que atenção redobrada — dado que o autor é famoso por escrever pouco e dizer muito. Mas a coisa muda totalmente de figura quando falamos de A Presença Total, o “livro de divulgação metafísica” [sic] de Lavelle, em que ele busca apresentar um resumo [sic, novamente] de sua imensa Dialética do Eterno Presente, coleção de que gozamos de apenas um mísero volume em português, a saber, Do Ser. Para ambos os citados roga-se que o leitor tenha feito o dever de casa, a saber, conhecer mais ou menos os dois mil anos de filosofia que ocorreram antes de Lavelle começar a escrever suas obras. Há muitas outras obras escritas por Lavelle e principalmente muitas outras que não possuem traduções para o português; por outro lado, creio que as recomendadas aqui darão ao interessado um bom panorama das idéias do filósofo.
***
Revisão de Pietra Gimenes David
***
Notas:
[1] Este prefácio foi adicionado ao livro, que originalmente não incluía nenhum, seguindo o conselho de Léon Brunschvicg, que pensou que uma nova interpretação da qualidade se beneficiaria de ser confrontada com a dos dois filósofos contemporâneos, Hamelin e Bergson, a qual ambos deram uma concepção mais original e pessoal.
[2] Esta noção de univocidade que recebeu uma justificação em nosso livro De L’Être, do qual constitui o centro, foi previamente exposta a numerosas críticas, em particular da parte dos tomistas. Mas hoje é inútil querer ressuscitar as querelas entre a univocidade e a analogia e opor Escoto a São Tomás. Pois a univocidade do ser, se não é a unidade de uma denominação abstrata, expressa apenas a ideia de que é Deus o ser de todas as coisas; e longe de nos conduzir ao panteísmo e excluir a analogia, ela nos preserva do primeiro, obrigando-nos a fazer de cada ser particular um centro de iniciativa comparável ao Ser do qual ele participa, e funda o segundo, impedindo que todos os seres particulares sejam separados uns dos outros e de Deus por um abismo impossível de cruzar.
[3] Deve-se notar que o ser ainda não se distingue da existência e da realidade, como será na Introduction à l’Ontologie. Acontece que até aqui que estas palavras são usadas no mesmo sentido, embora a palavra existência já designe a posição do ser particular como tal, e realidade, a propriedade do ser que o faz aparecer como um dado. A univocidade é mantida na medida em que é verdadeiro que nenhuma forma de existência e nenhum aspecto do dado pode se sustentar e possuir o ser que lhes é próprio senão através da sua relação com a própria totalidade do Ser.
[4] Talvez todas as dificuldades da metafísica derivem desta falsa suposição de que o conhecimento está fora do ser para ser aplicado a ele, em vez de lhe ser interior e até mesmo um dos seus aspectos, mas que, ao menos idealmente, abrange-o em sua totalidade.
[5] Tautologia onde se revela a admirável identidade do ser como substantivo (ou seja, como substância) e do ser como verbo (como um ato).
[6] A análise, entendida desta forma, não é mais uma operação formal: é o princípio da diferenciação universal; ela descobre tanto a existência quanto a hecceidade. Acrescentemos que, se esta diferenciação é um efeito da participação, esta faz emergir do ser puro determinações que ele não continha, que estavam nele apenas eminentemente e apenas em potência em relação à atualidade que saberemos lhes dar em nossa experiência.
[7] No entanto, as categorias podem ser derivadas de um princípio único não por um método indutivo, como queria Kant ao tomar como fio condutor a ideia geral das condições virtuais da possibilidade de toda experiência dada, mas por um método dedutivo baseado nas condições atuais de possibilidade do ato de participação como tal.
[8] Esta plenitude é a plenitude de um ato onde as determinações particulares são, em relação a nós, apenas possibilidades, e que dependerão de nós para serem atualizadas.
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