Por Edward Feser
Tradução e Notas de Helkein Filosofia
Compreensões inocentes do materialismo atribuem-lhe concepções igualmente ingênuas de matéria. O senso comum nos diz que a “matéria” é mais ou menos da maneira como nos aparece: um material sólido, colorido, dotado de gosto, som e solidez. O materialismo ingênuo crê, por sua vez, que todo o existente é, neste sentido, material, tratando mesmo partículas inobserváveis feito pequenos objetos sólidos, coloridos, sonoros, etc., semelhantes a bolinhas de gude.
Isto é, claramente, errado. A concepção de matéria herdada pelos materialistas [modernos], advinda das especulações de Galileu, Descartes, Boyle, Locke e outros pensadores do início da modernidade, abstrai as características imputadas pelo senso comum, qual cor, odor, etc., e imputa-lhes existência antes na mente do observador do que na matéria mesma. Daí, o material é caracterizado sob termos matemáticos, de maneira quantitativa – e não qualitativa. Descartes, por exemplo, considera material o passível de expressão nos termos da geometria analítica.
A concepção moderna de matéria, neste sentido, a desmaterializa, eliminando características atribuídas pelo senso comum, que considera material o visto ou tocado. Por outro lado, a concepção de matéria sustentada pelos pensadores modernos como adequada inclui ignorar, parcial ou totalmente, o visto, ouvido, etc.: material não é o sensível, mas algo extraído de uma operação abstrativa semelhante àquela própria da matemática aplicada. A tese materialista da onipresença da matéria fica, deste prisma, menos clara: qual o significado de “material” se não pensarmos a matéria em termos ingênuos? Quais as implicações da tese da onipresença da matéria?
Cientistas e pensadores do final do século XIX e início do XX julgaram, frequentemente, que a noção matemática de matéria não explicava adequadamente sua essência, fornecendo apenas uma estrutura abstrata e não a natureza do estruturado. Podemos verificar tal opinião nos trabalhos de Poincaré, Duhem, Russell, Eddington e outros. Entretanto, topando, neste ponto, com a tese “tudo é material”, seu significado torna-se turvo, pois seu expressum é o seguinte: “tudo possui tal e tal estrutura matemática”. Isto decerto significa algo, mas não exatamente o esperado pelo materialismo – ao menos num primeiro momento.
Suponhamos o dito: “tudo é descritível em termos lógico-formais”. Esta tese não é ontologicamente importante. Ela – de fato – não exclui nada, pois (em certo sentido) todo existente (ou passível de existência) é descritível em termos lógicos-formais – e nem a tese de que tudo possui tal e tal estrutura matemática é, do ponto de vista ontológico, tão geral. Por um lado, pelo menos algumas propriedades matemáticas (feito as geométricas) são mais específicas do que as lógicas; por outro, mesmo interpretando a tese da estrutura matemática universal, o materialismo está comprometido com a noção de estrutura fornecida pela física – e isto exclui muitas coisas. No entanto, há muitas coisas inclusas. Dizer “tudo tem tal…” não exclui a possibilidade de tudo ser composto de ato e potência, ou dos qualia integrarem as propriedades das coisas; noutros termos, não elimina a idéia de v compreendida sob contornos aristotélicos – ou pampsiquistas.
A razão para tal concepção não excluir as outras teses é que “tudo ter tal e tal…” não implica no esgotamento da natureza das entidades existentes numa descrição de sua estrutura matemática. Pode ocorrer de todo existente possuir uma estrutura matemática revelada pela física e, também, outras propriedades residentes para além do âmbito físico; esta é a opinião de Russell e também de escritores por ele influenciados, feito David Chalmers e Galen Strawson. Mas, admitindo a inclusão dos qualia entre as características intrínsecas da matéria, observa Chalmers, chegamos numa posição pampsiquista ou dualista de propriedades. Uma posição compatível com estas duas não é a normalmente almejada ao tratar de materialismo – mas é a obtida ao interpretar, à luz da concepção moderna de matéria, a tese “tudo é material.”
A concepção russeliana é chamada, por vezes, de realismo estrutural epistêmico; ela sustenta que a descrição do mundo fornecida pela física e pela matemática vale até onde ambas vão (sendo, aqui, uma forma de realismo), mas não esgota o escopo da verdade. A física pode conhecer apenas a estrutura matemática da matéria (daí o adjetivo “epistêmico”), mas não a reduz a isto. Pode-se, por outro lado, argumentar que a matéria é reduzida a tal estrutura; teremos, então, o por vezes nomeado realismo estrutural ôntico, onde a descrição físico-matemática da matéria é verdadeira (daí realismo) e também esgota sua essência: a matéria é uma estrutura matemática e nada há, nela, além disto (daí o adjetivo “ôntico”).
Algo parecido é defendido por filósofos feito James Ladyman e Don Ross no livro Every Thing Must Go: Metaphysics Naturalized, e também pelo físico Max Tegmark – e teci muitas críticas a Ladyman em meu A Vingança de Aristóteles. Basta observar, nos termos deste texto, que tal cosmovisão identifica o mundo físico com um tipo de objeto platônico, pois Ladyman e Ross tentam resolver seu problema negando a existência de uma distinção entre abstrato e concreto – e, como argumento em meu livro, esta posição é incoerente e dotada de argumentos questionáveis. Ademais, mesmo à parte disto, o problema fica sem solução, pois (diria um aristotélico) o próprio platonismo obscurece a distinção entre abstrato e concreto,[1] porquanto a forma platônica conserva características tanto universais (abstratas) quanto substanciais (concretas). Nublar a distinção entre abstrato e concreto é cair no platonismo, em vez de evitá-lo. O realismo estrutural ôntico considera o todo existente certa forma platônica, i.e., o mundo considerado matematicamente estruturado; portanto, interpretando o materialismo nesta clave, ele se torna um modo de platonismo – e, novamente, não é isto o que geralmente se pensa ao tratar de materialismo.
A solução apresentada pelos neoplatônicos para aplacar a confusão entre abstrato e concreto foi aceitar a tese aristotélica[2] da existência dos universais apenas no intelecto e colocando o mundo das formas num nous divino e infinito.[3] Para Plotino, esse Nous [Intelecto] é a primeira emanação do Uno e, para os cristãos neoplatônicos, o próprio Deus. Agora, considerando o mundo como uma Idéia ou objeto abstrato e acrescentando a tese da existência destes objetos apenas em intelectos, então obtemos um tipo de idealismo ou (dependendo da definição de intelecto) até mesmo um panteísmo. Eddington e James Jeans, outro físico do século XX, seguiram explicitamente a via idealista.
Autores contemporâneos sugerem que o universo pode ser uma espécie de simulação computadorizada e a estrutura abstrata descrita pela física é o “software” subjacente à simulação[4]; isto é próximo tanto do idealismo quanto do panteísmo. O universo “computadorizado” corresponde, grosso modo, ao Espírito Absoluto de um idealista ou panteísta de cepa hegeliana, e a simulação corresponde ao desdobramento deste Espírito na história. Novamente, não é o pensado quando tratamos de materialismo. Conclusão: o materialismo se transforma, mediante o exame de sua concepção moderna, numa ou noutra das várias cosmovisões aparentemente conflitantes: dualismo, pampsiquismo, platonismo, idealismo ou panteísmo.
Se, por outro lado, partirmos de uma concepção materialista de “mente”, lograremos resultados também surpreendentes. Há décadas que a tendência dominante entre os materialistas é a de conceber a mente em termos funcionalistas, i.e., analisar os fenômenos mentais segundo suas funções em vez de sua essência. A tese, por sua vez, é comumente desenvolvida assim: a mente é um tipo de software executável em qualquer número de diferentes tipos de hardware e, aqui, a mente, feito a matéria, é tida como uma estrutura abstrata e, novamente, essencialmente “desmaterializada” em nome do materialismo. Há, ainda, outros resultados estranhos quando vindos de um materialista, qual a idéia de que uma mente pode “saltar” de uma encarnação para outra mediante um software carregado em seu hardware antigo que a permita ser “baixada” para um novo (isto não é uma transmigração de almas?). Quando combinamos a idéia de “mente-software” com a de um “universo computadorizado”, obtemos este resultado: a mente humana individual é um dos muitos programas executados no plano de fundo de um mesmo sistema operacional – e isto é muito semelhante à relação entre as almas individuais e a “alma do mundo” de alguns sistemas panteístas e idealistas.
Eu diria que o motivo de tantos materialistas não perceberem o quanto estas implicações estão próximas de concepções vistas como opostas ao materialismo é por muitos deles simplesmente não conhecerem bem a história da filosofia não-materialista – ou a filosofia em geral. Comumente concebem a alma de maneira rudimentar (feito um ectoplasma, ou um fantasma), e o mesmo se repete com Deus (um ectoplasma gigantesco ou o mais poderoso dos fantasmas). Daí segue uma compreensão muito deficiente do que os filósofos platônicos, aristotélicos, escolásticos, idealistas, idealistas, etc. dizem quando tratam da alma ou de Deus é – mesmo quando sabem algo de seus ditames. Nisto, ironicamente, eles materializam o imaterial e desmaterializam a matéria.
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Notas:
[1] Isto não acontece. A idéia platônica é uma entidade real subsistente extra-mentis na qualidade de unidade estrutural que possibilita a existência de entidades concretas. A idéia platônica deve ser vista como ideal na medida em que é uma “região” da realidade que não se “concretiza” no mesmo sentido das entidades individuais, as “coisas no mundo” – ou, neste caso, as substâncias. Neste sentido, sua existência é semelhante à lógica. Ainda que este artigo seja antigo – antes do lançamento do Aristotle’s Revenge: The Metaphysical Foundations of Physical and Biological Science
– é de se perguntar de onde Feser retirou tal concepção das idéias platônicas. [N.T.]
[2] A tese é tomista; ela aparece em O Ente e a Essência. [N.T.]
[3] A tese é agostiniana e não necessariamente neo-platônica. [N.T.]
[4] Forma de pensamento metonímico onde se projeta um mecanismo pensado pelo homem em estruturas reais, esquecendo que este procedimento é análogo e não unívoco. Ademais, se a física descreve estruturas que sustentam a realidade então elas descrevem algo real e não uma simulação; um procedimento análogo seria dizer que o rio X revela que o homem é, na verdade, um conjunto de ossos, e sua carne e sangue são simulações, etc. [N.T.]
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