Por A.E. Taylor
Tradução de Johann Alves
Notas e comentários de Helkein Filosofia
Para que a vida da sociedade seja completamente saudável do ponto de vista moral, é preciso, antes de mais, assegurar que a vida familiar seja sã. O casamento deve ser considerado como um dever solene para com a sociedade; a negligência egoísta no cumprimento deste dever, como já o dissemos, deverá ser penalizada. Despesas extravagantes com festividades nupciais devem ser desencorajadas. A paz do lar também estabelece um regramento correto para o tratamento dos criados. O senhor deve, tanto para seu bem como para o do seu servo, ter como regra ser ainda mais escrupulosamente justo no tratamento dos seus escravos do que no comportamento para com os seus iguais (777d).[1] Mas ele deve ser estritamente justo, sem, no entanto, comprometer sua posição de senhor, apresentando familiaridades impróprias. A sua palavra deve ser lei para seu escravo, cabendo a ele castigar qualquer desobediência. Quando os nossos jovens se casam, temos de velar para iniciarem a sua vida conjugal no bom caminho. Não devemos permitir pensar que podem passar aqueles primeiros dias, antes de terem filhos, como bem lhes apetece, feito uma espécie de lua de mel. O jovem marido deve, por exemplo, ocupar o seu lugar à mesa pública com os seus concidadãos, exatamente como está habituado a fazer (780b). E, embora tal não tenha sido tentado nem mesmo em Esparta, as mulheres, assim como os homens, devem ser ensinadas a viver sob o olhar da sociedade a que pertencem. Elas são mais frágeis do que os homens e, portanto, precisam ainda mais ser protegidas pelo conhecimento, pois sua conduta está aberta à censura pública. Também elas devem ter a sua mesa comum, e não devemos dar ouvidos às queixas sempre levantadas contra o reformador moral que reivindica o direito de regular “assuntos privados” (780d—781d).[2] Os três apetites humanos mais aguçados são a fome, a sede e a libido, e os rudimentos da existência civilizada só se tornam possíveis pela regulação correta dos três (782d—783b).[3] Quando um homem e uma mulher se casam, devem ter como dever apresentar à cidade uma descendência digna. Deveria haver uma comissão de senhoras, nomeada pelas autoridades, para supervisionar o comportamento dos casais a este respeito e aconselhá-los; tal comissão terá um controle geral sobre as pessoas casadas durante dez anos após o casamento e tratará das suas obrigações tanto do ponto de vista eugênico quanto moral. Se um casamento não tiver filhos, a comissão providenciará sua dissolução em condições equitativas após os dez anos.[4] Ela e o νομοΦύλακες atuarão como conciliadores nos litígios conjugais, e haverá sanções para as partes que se mostrarem intratáveis às suas diligências. Eles também providenciarão o castigo correspondente às violações da fidelidade conjugal caso sejam demasiado graves para serem ignoradas. Não é preciso dizer que deve ser mantido um registro cuidadoso de nascimentos e mortes, sem o qual não poderíamos garantir a observância dos regulamentos sobre as qualificações de idade adequadas para o casamento, cargos públicos ou serviço militar. Os homens devem casar-se entre os 30 e os 35 anos, e as mulheres entre os 16 e os 20 anos.[5] Um homem não pode ser nomeado para um cargo público com menos de 30 anos, nem uma mulher com menos de 40 anos. O período de responsabilidade para o serviço militar será, para um homem, dos 20 aos 60 anos (regra ateniense); e se as mulheres forem incumbidas de qualquer “trabalho de guerra”, deverá ser após terem dado à luz aos seus filhos e antes de atingirem os 50 anos (783d—785b).[6]
O sétimo livro das Leis contém o esquema educacional mais importante e mais detalhado de Platão para uma educação universal. Os princípios são, em essência, os mesmos já familiares vistos na República, mas o tratamento é muito mais detalhado e, em alguns aspectos, mais rigoroso. Deve haver uma organização sistemática desde o início, pois se deixarmos qualquer coisa ao capricho do proprietário individual, não conseguiremos assegurar a comunidade de espírito e o caráter necessário à pólis – mas cada questão deve ser resolvida no momento correto. É precisamente quando o corpo e a mente da criança são mais maleáveis que jaz vulnerável aos piores e mais duradouros danos. Devemos, portanto, começar a tarefa até mesmo antes do nascimento da criança. Uma mãe grávida deve realizar os exercícios pertinentes ao filho ainda não nascido (789d). Quando a criança nasce, devemos garantir que, antes mesmo de ela poder andar, sua ama lhe dê os exercícios convenientes e, particularmente, não lhe permita se machucar ao começar a andar cedo demais (789e). Um bebê deve viver, tanto quanto possível, como se estivesse sempre no mar, e deve ser balançado sob cantigas (790c—e) para evitar que se assuste; esta é uma preparação para o desenvolvimento de um caráter corajoso e firme. Devemos tomar cuidado para manter o bebê em um Pólis calmo; é um péssimo começo para sua educação moral permitir que ele seja inquieto ou turbulento (791d—793d). Quando a criança estiver com 3 anos ou mais, podemos começar a corrigi-la sabiamente enquanto ela brinca. É melhor deixar as crianças inventarem suas próprias brincadeiras; mas, a partir dos 3 e até os 6 anos, elas devem ser diariamente levadas, juntas, a vários templos para brincar sob a supervisão de damas nomeadas pelas autoridades, que verificarão se as amas educaram suas crianças da forma esperada pela Pólis (793d—794c). As lições começam, de fato, aos seis anos, e com elas a separação entre meninas e meninos. Os meninos devem aprender montaria, arquearia, estilingue e dardo, e será bom para as meninas aprenderem as mesmas coisas, ou, pelo menos, a manejar essas armas em alguma medida (794c—d). Cumpre, também, treinar as crianças para serem ambidestras. A indiferença com que os citas usam uma ou outra mão para manejar o arco demonstra a possibilidade e importância prática de prática ter duas “mãos direitas” (794d—795d).[7] Tomando “ginástica” e “música” como nomes respectivos para o treino do corpo e da mente, podemos dividir a primeira em dois ramos: a dança e a luta. Para fins educacionais, a luta exibicional é inútil; apenas o tipo de luta em pé, treino igualmente bom para a guerra, deve ser praticado (796a—b);[8] a dança recomendada é igualmente feita com armadura, por proporcionar um bom treino preliminar para os anos de educação militar (796b—d).
A “música” requer um tratamento mais completo. Devemos nos lembrar, outra vez, da grande importância prática desta questão. É importante não haver inovações desnecessárias no “funcionamento” de uma sociedade, pois levam a mudanças em seus fundamentos e qualquer desvio em um “regime” estabelecido acarreta riscos para a saúde de uma sociedade, assim como acarreta riscos para um organismo (797a—798d).[9] A música, como tantas vezes dissemos, “imita” ou “reproduz” tipos de humores e caracteres, e, por desejarmos a constância do carácter nacional, devemos zelar pela constância de seus padrões miméticos. Os egípcios exemplificam: cada forma musical permitida é consagrada ao culto de um deus e, assim, a inovação se torna sacrílega; devemos exigir a observância deste exemplo em nossa cidade, mesmo sob o custo da estranheza dos gregos. Garantir esta regra deve ser uma das funções do conselho dos νομοφύλακες (799a—800b).[10] Eles não permitirão a poluição dos festivais dos deuses por coros declamando blasfêmias e lamentando de forma adequada apenas para o intérprete de um cântico fúnebre (800c—e) (Isso pretende excluir “coros trágicos” e, com eles, a tragédia mesma).
Nossos poetas devem tratar seu trabalho como oração, cuja primeira regra é a de εὐφημία, reverência silenciosa; a segunda regra é reconhecer que eles não sabem como “pedir corretamente” e devem aprender, com a lei, quais são as bênçãos verdadeiras pelas quais o homem deve orar (801a—c). Os poetas, então, devem submeter-se à censura e não circular nenhuma composição destituída do imprimatur dos νομοφύλακες (801d).[11] Será função da Pólis compilar uma antologia adequada de versos adequados nossos requisitos; os compiladores, além de serem homens de bom gosto, devem ter atingido a idade madura de cinqüenta anos; podemos esperar, dessa forma, inspirar nossos jovens com o primeiro toque do gosto “adequado” em alta cultura (802a—d).[12] Deve haver, evidentemente, uma distinção entre as canções aprendidas pelos meninos e as pelas meninas; o tom dos primeiros deve ser elevado e viril, e o das segundas, calmo e puro (802e).[13]
Prossigamos com os detalhes da educação a ser construída com base neste gosto adequado, estético e moral. É possível fazer a seguinte analogia: lançamos a quilha do navio, e agora é necessário projetar as bordas. Talvez não tratemos a vida com a seriedade que merece. Podemos ser apenas brinquedos nas mãos de Deus, mas, mesmo se for o caso, é preciso “jogar bem o jogo”, e não à maneira invertida da humanidade em geral, cuja crença é tratar a guerra como importante e a paz como adereço. Na verdade, é a paz que é “real” e “séria”, pois apenas nela podemos buscar a educação, o assunto mais sério de nossas vidas (803a—804b).
Retornando a nosso tema, precisaremos de escolas para transmitir o ensino exposto, com edifícios e terrenos adequados. E os professores dessas escolas precisarão de salários; portanto, devem ser estrangeiros. Todas as crianças devem freqüentar a escola (φοιτᾶν) diariamente; isto não deve ser deixado ao capricho dos pais. É preciso observar isto, tanto para as meninas como para os meninos; elas devem aprender até mesmo a andar a cavalo e a disparar, ou a Pólis ficará privada dos serviços que espera, em caso de necessidade, de metade dos seus cidadãos (804e—805b).[14]
É importante notar a magnitude da proposta platônica. Como salienta o Professor Burnet, concebe-se, pela primeira vez, a “escola secundária”, um estabelecimento permanente para a educação superior de meninos e meninas por professores especialmente competentes, devidamente organizados e pagos. (A impossibilidade de manter uma tal instituição sem salários é a razão pela qual, conforme o sentimento helênico, se assume que todos eles devem ser não-cidadãos). A “escola de gramática” aparece-nos como uma instituição real na época macedônica; é presumível que ela deva a sua existência à influência exercida nessa época pelos membros da Academia como especialistas reconhecidos em educação e jurisprudência. A prática antiga, da época de Péricles, era a de que a “educação superior” de todos os tipos era obtida através das palestras dos sofistas, cada um com a sua especialidade. A concepção platônica é a sistematização do ensino secundário, coordenando os especialistas em instituições únicas.
Não precisamos temer a crítica de nossas opiniões sobre a educação das mulheres serem paradoxais. As mulheres compartilham os trabalhos dos homens, como no exemplo da Trácia e de outras regiões onde elas realizam trabalhos agrícola, embora em Atenas se espere que elas não façam nada além de ficar dentro de casa, cuidar da despensa, fiar e tecer. Em Esparta, segue-se um curso intermediário: as garotas aprendem a lutar, e não fazem trabalho doméstico, mas também não se espera delas alguma capacidade bélica em prol da defesa nacional. Com todo o respeito a um ouvinte espartano, devemos confessar nosso descontentamento com tal compromisso; as mulheres deveriam ao menos ser capazes, em caso de necessidade, de afugentar invasores da cidade (806b).[15]
O esquema adotado para nossa comunidade garante que os nossos cidadãos não precisarão trabalhar por longas horas para garantir a sua subsistência; eles terão tempo livre e não devem desperdiçá-lo se engordando como gado, mas usá-lo para viver a vida mais exigente de todas, voltada à excelência do corpo e da mente. Precisarão se levantar cedo, antes de todos os servos, e para evitar o desperdício destas preciosas horas com o sono, os assuntos públicos e domésticos deverão ser tratados logo de manhã. Dormir muito e até tarde é tão prejudicial tanto para o corpo quanto para a mente (806d—808c). Os meninos devem, por isto, ser levados à escola ao amanhecer, e tanto os servos que os conduzem quanto os mestres devem prestar a maior atenção à sua moral, pois um menino, cuja “fonte de inteligência” não flui de forma clara é o mais indisciplinado de todos os animais. Quanto às matérias escolares, já falamos dos princípios com os quais as canções e os poemas devem ser selecionados, mas será mais difícil selecionar a prosa adequada. É claro que se deve aprender aritmética suficiente para a vida quotidiana, astronomia elementar, compreender o calendário (809c—d) e música para afinar a lira. Isto é suficiente até os meninos completarem dezesseis anos, se deixarmos três anos (dos 10 aos 13) para a leitura e a escrita e mais três para o estudo da lira, tendo o cuidado de não permitir os mais sagazes avançarem demasiado depressa e nem os lesados ficarem muito para trás (810b). O único problema sério nesta fase é a seleção das leituras em prosa. É certo podemos deixar os rapazes lerem boas obras de moral e de direito (811c—e), mas é complicada a relação com outros tipos de prosa – e uma leitura demasiado vasta não seria boa para os rapazes (811b).[16] A supervisão de todo o sistema estará nas mãos do Ministro da Educação, assistido pelo conselho de peritos escolhidos por ele próprio (813c). É notória a presença constante de professores especializados (assalariados) para todos os exercícios relativos ao corpo; haverá mulheres e homens entre os professores, e tanto as meninas como os meninos receberão o treino, a fim de se tornarem capazes de se defender em caso de necessidade (814a).[17]
Há ainda três “ramos do saber” (μαθήματα) que todo o homem livre deve dominar — a aritmética, a geometria e a astronomia (817e). São poucos os jovens capazes de os dominá-los, mas todos devem estudá-los “até onde for realmente necessário” (818b).[18] Mas até que ponto? Pelo menos até onde os egípcios conseguem levar grandes turmas de jovens. Eles têm um método para ensinar os jovens a lidar com frações e a encontrar os divisores de números através de jogos onde grinaldas e outros objetos são divididos por um determinado número de pessoas,[19] ou pares de pugilistas. O estudo destes problemas pode facilmente levar ao reconhecimento da existência de comprimentos, áreas e volumes “incomensuráveis”, um assunto sobre o qual os gregos, mesmo os dedicados à matemática, são vergonhosamente ignorantes (820b), mas não devemos deixar nossos jovens participarem desta ignorância. Da mesma forma, o nosso ensino secundário de astronomia deve corrigir o erro verdadeiramente “ímpio” da astronomia grega atual, que atribui movimentos irregulares aos corpos celestes e nos leva a chamar o mais rápido deles do mais lento. Temos de tornar claro que todos os chamados “planetas” têm um movimento que é estritamente regular (822a).[20]
Poderia parecer oportuno acrescentar, aqui, algo sobre o valor da caça como atividade para os jovens. Mas é preciso deixar claro, de uma vez por todas, que não podemos esperar leis referentes a tudo. Os pormenores devem ser deixados ao Ministro da Educação, verdadeiramente competente, para regulá-los conforme seu ajuizamento. (822d—823d). É suficiente, para nós, dizer que o encorajamento da caça contribui para a formação de bons homens. Não desejamos ver nossos cidadãos se lançando ao mar, então desencorajaremos a pesca marítima; por razões superiores, opomo-nos a ataques e à captura de homens, e a qualquer tipo de perseguição dependente da mera astúcia. Devemos desencorajar, portanto, a mera captura com rede e laço de qualquer tipo de criatura, mantendo apenas “a caça de quadrúpedes com cavalos, cães e o próprio corpo”, como um treino de resistência e coragem (824a).
O conteúdo dos Livros VIII e IX deve ser tratado sumariamente. É feita uma provisão de como seria, em qualquer “legislação” grega real, em primeiro lugar, o culto na Pólis: cada mês do ano e todos os dias do mês possuirão seu culto apropriado; o objetivo é colocar toda a vida de toda a comunidade sob a “sanção religiosa” (828). Havendo “competições” ginásticas e musicais como parte deste culto regular, Platão estabelece regulamentos para os exercícios mensais periódicos da milícia civil, bem como para as “competições” que marcarão festivais especiais. Estes últimos devem corresponder aos jogos pan-helênicos, mas o programa dos “eventos” é revisto. A competição deve ser feita em exercícios de força e resistência dotados de valor militar real, particularmente em evoluções rápidas e apetrechos completos, pois a guerra simulada deve reproduzir, em seu modelo, o mais próximo possível da real – daí o “toque de perigo realista”. As meninas e as mulheres devem participar de tudo isto na medida de suas capacidades, mas não é possível fornecer, neste ponto, uma regulamentação pormenorizada (829—835d).
Isto levanta uma questão ética importante: não haverá um perigo real de que a associação demasiado livre de jovens de ambos os sexos em atividades conjuntas, e o seu abundante tempo livre do “trabalho”, possa levar a um relaxamento da moralidade sexual? Platão discorda, se conseguirmos estabelecer a tradição social correta nestas matérias, a de que as relações “homossexuais” de todos os tipos[21] devem ser reprovadas como antinaturais e o apetite sexual normal não deve encontrar gratificação fora dos limites do matrimônio legal.[22] Esta exigência pode parecer utópica para a maioria das pessoas e uma tentativa de suprimir o “amor”. Mas não nos deixemos enganar por termos equívocos: o amor da boa-vontade é uma coisa, o amor do apetite carnal é outra completamente diferente; a supressão do segundo não milita de forma alguma contra o cultivo do primeiro.[23] A possibilidade do padrão de continência proposto é demonstrado pela abstinência vitalícia de atletas conhecidos, e certamente nossos cidadãos podem fazer, para obter uma coroa espiritual, à imagem do feito pelos pugilistas por uma guirlanda olímpica.[24] Que o apetite carnal pode ser efetivamente contido por sanções morais e religiosas, o vemos pela completa supressão do desejo incestuoso na vida das sociedades civilizadas, efetuada simplesmente pela tradição da impiedade do incesto. Portanto, o nosso padrão será considerado praticável quando tiver sido consagrado pelas sanções de uma tradição social (835d—842a).[25] Se acharmos que assegurar a total conformidade com esta regra está além do nosso poder, devemos suprimir ao menos as paixões “não-naturais” e que irregularidades sejam vistas, caso detectadas, como desgraças.
O orador passa, agora, a considerar os regulamentos necessários para a prossecução da agricultura, a base econômica da sociedade pretendida. Há, sob este título, questões como invasões de fronteiras, desvio de cursos de água, propriedade de animais perdidos, regulamentação do mercado e coisas do gênero. Em questões como estas há muitas regras boas já existentes que faremos bem em seguir (843e), uma sugestiva indicação de que muitas das regulamentações propostas são simplesmente baseadas no código vigente da Ática. [26] O estudante da filosofia política platônica não precisa se deter nesses detalhes, embora sejam de duplo interesse para o historiador do direito e dos costumes. Eles esclarecem questões sobre o direito ático e fornecem o ponto de partida para a casuística pela qual os juristas romanos e, em tempos modernos, publicistas como Grotius e Pufendorf se esforçaram para chegar aos princípios de um direito de propriedade satisfatório. Não é surpreendente que os exemplos de Platão reapareçam, por exemplo, nas Institutas de Justiniano e no De Jure Belli et Pacis. A discussão sobre a regulamentação do mercado leva, naturalmente, à consideração das condições permitidas para estrangeiros entrarem na sociedade e exercer uma profissão (850b—d). Eles não serão sujeitos a encargos comunitários (poll tax), mas devem ter um emprego que lhes permita o sustento, se conformar às regras da Pólis e, normalmente, partir após vinte anos de residência (ou seja, não devem adquirir um “direito de estabelecimento”)
Os dialogantes chegam, então, à jurisprudência criminal, com um pedido de desculpas pela necessidade de admitir a existência de crimes a serem legislados em uma sociedade corretamente constituída. Os crimes inicialmente considerados são, em ordem de gravidade, o sacrilégio, a traição e o parricídio. Estes são crimes “capitais”, e é melhor para seu perpetrador ser privado da vida; mas devemos estabelecer, de uma vez por todas, que a pena capital não deve incluir a penalização de sua família inocente por meio do confisco de bens, e eles não devem ser considerados desonrados por sua ofensa. Crimes semelhantes cometidos contra um estrangeiro ou um escravo serão tratados de forma mais branda, com açoites e deportação. Platão permite, em geral, um uso mais livre de castigos corporais do que os legisladores modernos, pois não aceita a visão “humanitária” da dor física nem a idéia de sua aplicação ser particularmente degradante. Esses crimes capitais devem ser julgados por um tribunal composto pelos νομοφύλακες e por um número de magistrados do ano anterior;[27] o processo deve se estender por três dias.
Devemos insistir, contudo, que, na nossa Pólis, a jurisprudência penal considere, de forma científica, a psicologia do delinqüente (857c—d). A opinião corrente sobre este tema, como mostra a prática das sociedades existentes, encontra-se num estado de confusão. A justiça é considerada uma coisa “bela” (καλόν), mas o justo castigo infligido a um criminoso é visto como uma desgraça para ele (859d—860b). Porém, em prol da coerência, devemos defender que, se é “bom” fazer o justo, também é “bom” nos fazerem justiça. O centro desta confusão é a jurisprudência atual partir do princípio de que os homens maus fazem “voluntariamente” o mal, e daí a única grande distinção reconhecida pela lei vigente é a entre transgressão voluntária e involuntária. Mas temos de aderir ao princípio filosófico, tão familiar nos diálogos anteriores, de que “todo o ato errado é involuntário” (860d) e, por isso, não podemos fazer da distinção entre voluntário e involuntário a base do nosso código penal (861d). A distinção necessária é outra, a de βλάβη, a causa de dano ou perda, de ἀδικία, a violação de um direito. Ao infligir as penalidades, a questão adequada não é se o ato cometido foi voluntário ou não, mas se a pessoa atingida sofreu uma mera perda ou dano, ou foi ainda mais prejudicada nos seus direitos.
Aquilo a ser dito sobre o causador de um dano involuntário a outro não é, como diz a jurisprudência corrente, que ele cometeu um “erro involuntário”, mas que ele não cometeu um erro de todo e apenas causou um dano (861e—862c). É esta distinção entre causar um prejuízo e violar um direito que temos de tornar fundamental na avaliação das penas. Assim, a distinção entre causar um prejuízo e violar um direito, com a conseqüente distinção entre uma ação de indenização e um processo penal, é introduzida pela primeira vez na teoria jurídica nas Leis IX. Os tribunais podem reparar um simples dano através da atribuição de uma indenização, mas a violação de um direito deve ser compensada pela imposição de uma pena destinada a melhorar a alma do infrator (862c—e). Se duvidarmos da involuntariedade do ilícito, basta recordar quais são as suas causas — o temperamento, (θυμός), a ânsia de prazer, a ignorância (863a—864b).
Platão aplica, então, tais princípios à construção de um código penal. É necessário distinguir a violação de direitos da mera causa de dano, e, no caso da primeira, devemos distinguir entre violência e conspiração. Em seguida, regulamentações são estabelecidas para os casos de homicídio, suicídio, mutilação, ferimentos com intenção de matar, agressões menores, tendo como objetivo fornecer um exemplo de código penal logicamente estruturado. As penalidades dependerão não apenas da distinção principal, já estabelecida, mas também do status das partes envolvidas, sejam cidadãos, estrangeiros ou escravos. Os detalhes devem ser omitidos aqui. O inevitavelmente impressionante, de maneira desfavorável, ao leitor moderno, é a severidade no tratamento das injúrias cometidas por escravos contra pessoas livres. Isso, no entanto, é uma conseqüência direta do reconhecimento da posição servil, que concede a esses crimes algo do caráter de motim.
O Livro X apresenta-nos um dos mais importantes desenvolvimentos do platonismo: a sua teologia. Platão aparece, simultaneamente, como o criador da teologia natural e o primeiro pensador a propor que as falsas crenças teológicas —sendo elas distintas dos insultos a um culto estabelecido[28] — devem ser tratadas como um crime contra o Pólis e reprimidas pelo magistrado civil. Está convencido de haver certas verdades sobre Deus cujo conteúdo pode ser rigorosamente demonstrado de forma que sua negação conduz diretamente a uma conduta maléfica. Por isso, a negação destas verdades é uma ofensa grave contra a ordem social e deve ser punida como tal – o princípio que a Igreja Romana ainda mantém, e é dever do magistrado suprimir a depravação herética. Historicamente, temos aqui o fundamento da teologia natural ou filosófica, cujo nome devemos a Marco Terêncio Varrão, que distinguiu três tipos de teologia, ou “discursos sobre os deuses”: a poética, consistindo simplesmente nos mitos relatados pelos poetas; a civil, significando o conhecimento do calendário do culto da Pólis, uma criação do “legislador”; e a natural ou filosófica, a doutrina sobre as coisas divinas ensinada pelos filósofos como parte integrante da sua descrição de φύσις, natura, realidade. A primeira, uma visão tão antiga quanto Heródoto, é mera invenção de poetas, visando apenas o interesse e o divertimento; a segunda foi fabricada pelas autoridades tendo em vista de sua utilidade social; e a terceira – e somente ela – reivindica ser parte da verdade os cosmo.[29] Devemos, certamente, ter o cuidado de lembrar que o epíteto “natural”, como originalmente aplicado a este tipo de teologia, não tem que ver com uma teologia “revelada” ou “histórica”, sendo meramente “científica”.
As três heresias consideradas por Platão como moralmente perniciosas são, na ordem de sua torpeza moral, a) o ateísmo, crença na inexistência dos deuses, sendo a menos ofensiva; b) o epicurismo, nome concedido anacronicamente à doutrina de os deuses (ou Deus) serem indiferentes à conduta humana e; c), a pior de todas, doutrina de um ofensor poder escapar do julgamento divino mediante oferendas e presentes. É moralmente “menos pior” crer na inexistência de Deus do que num Deus indiferente, mas é muito ruim crer num Deus venal. Contra tais heresias, Platão erige provas relativas à existência de um Deus (ou deuses), a realidade de seu governo providencial e moral do cosmo, e da impossibilidade de subornar a justiça divina.[30]
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Notas:
[1] “O tratamento adequado dos servos consiste em não utilizar a violência com eles e em feri-los ainda menos, se possível, do que nossos próprios iguais…” [N.E.]
[2] “They too, must have their common table, and we should not listen to the complaints always raised against the moral reformer who claims the right to regulate “private affairs” (780d—781d).” [NT.]
[3] “Observo que com seres humanos tudo depende de uma necessidade e apetites triplos. […] Entre esses apetites, os de comer e beber se manifestam logo que o ser humano nasce […] Em terceiro lugar vem nossa maior necessidade e apetite mais agudo, que embora sendo o último a emergir, influencia a alma humana com a mais furiosa das loucuras: o apetite de gerar filhos, o qual arde com máxima violência. Esses três estados mórbidos devem ser dirigidos por nós ao que é mais excelente e não ao que é, como se chama, mais prazeroso, num esforço de contê-los por meio dos três freios mais fortes, a saber, o temor, a lei e a razão verdadeira…” [N.E.]
[4] Platão considera a manutenção da família da prole como o “estofo” sob o qual se erige a pólis das Leis; casais que não se reproduzam (ou escolham não ter filhos) são, deste ponto de vista, problema social e/ou sacrílego. Tal pensamento se manteve mais ou menos o mesmo, em versões evidentemente mais brandas, na contemporaneidade. Podemos verificá-lo em dois casos. No código civil brasileiro, onde lemos, no Art. 1557 Lei 10406/02: “a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência.” No Código de Direito Canônico, onde lemos: “Cân. 1084 — § 1. A impotência antecedente e perpétua para realizar o acto conjugal, por parte quer do marido quer da mulher, tanto absoluta como relativa, dirime o matrimônio, pela própria natureza deste.” Notemos que nenhum dos “códigos” é tão “rigoroso” quanto o platônico – pois permite o casamento entre pessoas que não queiram ou possam ter filhos –, embora todos pressuponham que o casamento gere prole. [N.E.]
[5] Em um segundo momento (em 833d), a idade mínima para o casamento das mulheres é considerada 18 anos; devemos lembrar-nos de que as Leis não receberam sua revisão final pelo autor. [N.A.]
[6] Platão busca, aqui, uma forma de não diminuir drasticamente os números da cidade em caso de conflito armado. Se pessoas sem filhos, que poderiam tê-los, morrerem na guerra, a pólis sofrerá um déficit demográfico e ficará defasada. Podemos exemplificar o temor platônico mediante o exemplo do desastre demográfico da Guerra do Paraguai. [N.E.]
[7] “[…] é somente graças à estupidez das amas de leite e mães que nos tornamos, por assim dizer “aleijados” das mãos…” [N.E.]
[8] Platão não vê utilidade nas lutas ornamentadas, e teria claramente considerado o jiu-jitsu indecoroso. Ele condena com tantas palavras a arte de Anteu, que, segundo a lenda, derrotava o oponente afundando-se no chão. [N.A.]
[9] “[…] Mas quem receberá especial aprovação é aquele que está sempre inovando ou introduzindo algum invento novo que altera a forma, a cor ou algo do gênero, isto embora fosse perfeitamente verdadeiro afirmar que não pode haver flagelo pior num Estado do que alguém desse tipo, visto que ele altera privadamente o caráter dos jovens e os faz desprezar o que é velho e não estimar senão o que é novo. E eu reitero que um Estado não pode ser vítima de dano pior do que o causado por uma tal sentença e doutrina. Simplesmente escutai enquanto vos falo de que magnitude é esse mal.” [N.E.]
[10] “E se qualquer pessoa propor outros hinos e danças além desses para qualquer um dos deuses, os sacerdotes e sacerdotisas estarão agindo tanto de acordo com a religião quanto com a lei ao expulsar, auxiliados pelos guardiões das Leis, tal pessoa da festividade; e no caso de resistência à expulsão, essa pessoa ficará sujeita pelo resto da vida a ser processada por impiedade por qualquer pessoa que desejar fazê-lo.” [N.E.]
[11] “O ateniense: A lei segundo a qual o poeta não comporá nada que ultrapasse os limites daquilo que o Estado tem como legal e correto, belo e bom; nem mostrará ele suas composições a nenhuma pessoa privada enquanto não tiverem sido primeiramente mostradas aos juízes designados para lidar com esses assuntos e aos guardiões das leis, e tendo estes as aprovado. E com efeito temos juízes já designados entre aqueles que selecionamos para serem legisladores em matéria de música e na figura do supervisor da educação. Bem, devo repetir minha pergunta: devemos promulgar isso como nossa terceira lei e como terceiro princípio geral e modelo? Qual é vossa opinião?” [N.E.]
[12] “Na verdade, toda criação musical sem uma ordenação regular se torna, quando regulamentada, mil vezes melhor, mesmo que sua melosidade não seja eliminada: toda criação musical proporciona prazer, já que se uma pessoa foi educada desde a infância até a idade adulta e da razão ouvindo música sóbria e regrada detestará o tipo oposto, chamando-o de vulgar, enquanto que se tiver sido educada convivendo com o tipo ordinário e meloso de música, declarará ser o tipo contrário frio e desagradável. Daí, como o dissemos há pouco, no tocante ao prazer ou desprazer que produzem, nenhum tipo sobrepuja o outro; a superioridade consiste no fato de que um tipo torna aqueles que foram nele educados melhores, o outro, piores.” [N.E.]
[13] “Ele terá que obrigatoriamente ajustá-las às harmonias e ritmos pois seria uma coisa horrível existir desarmonia entre o tema e a melodia, o contratempo e o ritmo como resultado de se proporcionar às canções os acompanhamentos impróprios. Deste modo, é absolutamente imperioso que o legislador determine, ao menos, um esboço dessas coisas. E se por um lado é necessário que ele designe tanto letra quanto música para ambos os tipos de canções como definido pela diferença natural dos dois sexos, por outro ele terá também que declarar com clareza no que consiste o tipo feminino. E agora nos é possível afirmar que o que pende para a generosidade e a coragem é masculino, enquanto que o que se inclina mais para o decoro e a moderação deve ser encarado mais como feminino tanto na lei quanto no discurso. É esta, portanto, nossa legislação da matéria.” [N.E.]
[14] “A isto adiciono o argumento a seguir. Diante da possibilidade desse costume sou levado a afirmar que o uso atualmente predominante nos nossos Estados é sumamente irracional, a saber, aquele que impede homens e mulheres de praticarem juntos com todas suas forças e ânimo idêntico os mesmos exercícios. O resultado disso é que todo Estado ou quase todo Estado ao custo das mesmas despesas e dificuldades acaba por ser apenas meio Estado em lugar de um inteiro, o que representaria um erro surpreendente a ser cometido por um legislador.” [N.E.]
[15] Há uma clara alusão ao fato, referido por Aristóteles (Pol. B 1269b-37), de que o comportamento de pânico das mulheres espartanas, quando Epaminondas ameaçava atacar a cidade, provava que o famoso treino em exercícios rudes não tinha o efeito de as tornar mais corajosas do que as mulheres de qualquer outro lugar. [N.A.]
[16] A questão é que a literatura em prosa que existia no tempo de Platão consistia, na sua maioria, nas obras dos homens de ciência jônicos e em obras técnicas sobre medicina e retórica. Por razões que se tornarão evidentes quando falarmos da teologia de Platão, ele considera os livros sobre ciência como uma leitura perigosa para os jovens. [N.A.]
[17] “[…] se algum dia for necessário que os guardiões das crianças e do resto do Estado deixem a cidade e marchem na totalidade das tropas, essas mulheres sejam, pelo menos, capazes de tomarem seus lugares…” [N.E.]
[18] “Todas estas ciências não devem ser estudadas com minuciosa precisão pela maioria dos alunos, mas apenas por alguns selecionados, que diremos quem serão quando estivermos próximos do fim [deste tratado das leis], visto que este será o lugar adequado para tal. Quanto ao grosso dos alunos, se por um lado seria vergonhoso para a maioria deles não compreender todas essas partes [das ciências], que são com justiça consideradas necessárias, é preciso que se admita que não é fácil e mesmo absolutamente possível para todo estudante penetrá-las nas suas minúcias. Bem, a parte necessária delas é impossível rejeitar e provavelmente era isto que estava na mente do autor original do provérbio que diz que “não se verá jamais nem mesmo a Divindade lutando contra a necessidade”, querendo dizer com isso, eu suponho, todos os tipos de necessidades que são divinas visto que em relação às necessidades humanas, às quais muitas pessoas aplicam o provérbio ao citá-lo, esse provérbio entre todos os provérbios seria, de muito, o mais fátuo de todos.” [N.E.]
[19] Contempla-se, aparentemente, dois problemas: a descoberta dos fatores dos números compostos e a resolução das frações. Sobre os problemas egípcios em questão, ver Burnet, E.G.Ph.³ 18-19. [N.A.]
[20] τὴν αὐτὴν γὰρ αὐτῶν ὁδὸν ἔκαστοι καὶ οἱ πολλὰς μᾶλλον δὲ κύκλω διεξέρχεται. Isto significa claramente não só que o movimento real de um planeta é regular, mas também que não é composto. O objetivo, portanto, é negar todas as teorias, como a de Eudoxus, que atribuem a um planeta um duplo movimento em sentidos opostos. Continuo a pensar que é isto que se pretende, apesar da discordância do professor Storey e do professor Cornford. [N.A.]
[21] Podemos ler explicações em Luc Brisson & Jean-Fançois Preadeau, As Leis de Platão p.90-1: “Os diferentes traços característicos dos preâmbulos são reunidos em um longo preâmbulo particularmente esclarecedor, aquele que trata da dupla lei sobre a sexualidade que se encontra em VIII, 835b-842a. Essa lei proscreve as relações sexuais com indivíduos do mesmo sexo ou com crianças. Sua proibição atinge as práticas homossexuais, que eram admitidas sob certas condições na Grécia. A lei dos magnésios, por contrariar práticas e costumes existentes e por tocar em desejos que são difíceis de ser controlados, deve ser precedida por um preambulo persuasivo cujo principal interesse é o fato de reunir o conjunto das implicações do preâmbulo platônico: tanto o recurso à autoridade como a ameaça religiosa (o legislador explica ao cidadão que esses atos criminosos são julgados como tais pelos deuses, que os castigarão), o apelo à tradição (que quer que a união ocorra com um indivíduo de sexo diferente e da mesma idade), o recurso a exemplos edificantes (os animais não possuem esses costumes; os campeões olímpicos tampouco, que pelo contrário praticam a abstinência sexual para obter o triunfo) e por fim o recurso à ameaça ou à desonra cívica para aqueles que não souberem controlar seus apetites. Como se pode perceber, o preâmbulo é sim uma forma de admoestação e até mesmo uma ameaça, baseado nas lembranças históricas ou em exemplos para inspirar no cidadão uma să repulsa às práticas culpadas. O que o preâmbulo deve obter, qualquer que seja a lei que ele preceda, é a adesão dos cidadãos. E essa adesão é produzida na maior parte dos cidadãos por meio de uma coibição do desejo pelo temor. Mais uma vez, isso é claramente enfatizado no preâmbulo da lei sobre a sexualidade, que explica que a persuasão é obtida quando o indivíduo que experimenta o desejo das práticas culpadas, desejo sobre o qual não é possível argumentar, renuncia a ele porque fica com medo das consequências de seus atos. Como o Ateniense explica em VIII, 840b-e, o preâmbulo é uma espécie de encantamento coletivo que se propõe a inspirar um respeito coletivo suficientemente eficaz para que o cidadão encontre nele o meio de coibir seus próprios desejos a ponto de não mais conseguir pretender transgredir a lei.” [N.E.]
[22] “É extremamente difícil, Clinias, pois se no que tange a outras matérias, que não são poucas, Creta geralmente e Lacedemônia nos suprem – e acertadamente – nos dando grande suporte na produção de leis que diferem daquelas de uso comum – no tocante às paixões do sexo (no que estamos absolutamente por nossa conta) nos são totalmente contrárias. Se fossemos seguir os passos da natureza e promulgar aquela lei que era vigente antes da época de Laios, declarando que é certo nos abster da relação sexual em que substituímos uma mulher por um homem ou um rapaz, aduzindo como evidência a natureza dos animais selvagens e apontando o fato do macho não tocar o macho com esse propósito, visto que é contra a natureza, em tudo isso estaríamos provavelmente usando um argumento que não é nem convincente nem tampouco consoante com vossos Estados”. As Leis 836a-d [N.E.]
[23] Loc. cit. 837b—d. Trata-se de uma crítica à teoria corrente em muitas sociedades gregas, não de Atenas, segundo a qual os laços “não naturais” são de grande valor para fins militares devido à devoção mútua que inspiram, teoria pressuposta pela instituição, por exemplo, da ἱερὸς λόχος tebana. O Fedro já tinha negado o fato da “devoção”; as Leis expõem o equívoco verbal com que a prática é defendida. (Para esta defesa, cf. o discurso de Fedro no Symposium, 178e.) [N.A.]
[24] Loc. cit. 839e-840c. O raciocínio nos é familiar a partir do paralelo paulino, 1 Cor. IX. 23-27. O padrão aqui estabelecido não é uma novidade dos últimos anos de Platão; as exigências feitas aos guardiões da República seriam ainda mais rigorosas. [N.A.]
[25] “O temor aos deuses, o amor à honra e a aquisição do hábito de desejar em lugar das belas formas do corpo, as belas formas da alma. As coisas que menciono agora são, talvez, como os ideais visionários numa história, e no entanto, em verdade, se puderem ser implementadas, se revelarão um enorme benefício para todo Estado. Possivelmente, se a Divindade o permitir, poderíamos impor uma de duas alternativas no que respeita às relações sexuais: ou ninguém ousará tocar nenhuma pessoa nobre e livre exceto sua própria esposa, nem lançar sua semente em mulheres adúlteras gerando filhos ilegítimos e bastardos, nem pervertendo a natureza desperdiçando seu sêmen na sodomia; ou então deveremos abolir inteiramente as relações com o sexo masculino, e quanto às mulheres, se promulgarmos uma lei segundo a qual todo homem que for denunciado como mantendo relações sexuais com quaisquer mulheres exceto aquelas que foram admitidas a sua casa sob sanção divina e celebração religiosa do casamento, sejam as primeiras compradas ou adquiridas de outra forma, será privado (como tais mulheres também o serão) de todas as honras cívicas, ficando na mera situação de um estrangeiro – provavelmente tal lei contaria com a aprovação, sendo considerada justa. Assim, que seja esta lei, quer a chamemos de uma lei ou duas leis, formulada e promulgada com referência às relações sexuais e casos de amor em geral, estipulando nesse sentido o que é comportamento correto ou incorreto nas nossas relações mútuas movidas por esses desejos. [N.E.]
[26] Os pontos importantes em relação ao mercado são: (1) todas as transações devem ser baseadas em pagamento imediato, (2) não deve haver “barganha” sobre os preços. O vendedor deve ter um preço fixo e não deve aceitar nem mais nem menos. Assim como Ruskin, Platão não está tão preocupado em evitar que um vendedor peça um preço muito alto, mas sim em impedir que ele ofereça mercadorias ruins sob o pretexto de um “sacrifício” (loc. cit. 849a—850a). [N.A.]
[27] 855c ss. A constituição do tribunal é assim sugerida pela do Areópago ático. Platão toma cuidado para evitar os erros judiciais associados à prática ateniense de permitir que um caso capital fosse julgado por um corpo irresponsável de cidadãos comuns escolhidos por sorteio, dos quais não havia possibilidade de apelo. [N.A.]
[28] “distinguished from insults to an established worship” [NT.]
[29] Para a doutrina de Varrão sobre este ponto, cf. Agostinho, De Civitate Dei, VI. 5. [N.A.]
[30] Voegelin (Ordem e História III p.320) chama esta tríade de crenças (Há Deus(es), ele é providente, e não pode ser subornado) de dogma mínimo. É possível dizer que Platão inaugura o “nicho” filosófico das “provas da existência de Deus”.
A “primeira prova”, dirigida especialmente contra os físicos, opera distinguindo a forma da matéria e, postulada a insuficiência explicativa da matéria (segunda navegação) fica refutado, via redução ao absurdo, o “materialismo” antigo – é neste sentido que Platão é dito “pai da metafísica” e fundador do novo paradigma da filosofia, onde ninguém mais será filósofo sem lidar com os problemas por ela postulados. A distinção implícita entre imperecível (imaterial) e perecível (material) evoluirá, posteriormente, para a noção de ser necessário encontrada, por exemplo, na terceira via de Sto. Tomás de Aquino – podemos encontrar, inclusive, o “protótipo da primeira via” tanto no Timeu quanto em Leis 893c). No entanto, Platão ainda identifica os astros (e o cosmo) como divinos. O itinerário completo da prova platônica no livro X das leis pode ser visto em Luc Brisson & Jean-Fançois Preadeau, As Leis de Platão p.145ss.
A “segunda prova”, (Leis 899d) dirigida aos que duvidam da providência, funciona atribuindo à divindade a suma virtude; ora, o Demiurgo, conforme explicado no Timeu (29e-30c.), gera o mundo por bondade, visando a possibilidade de os entes noéticos experimentarem o bom e o belo. Modificando um pouco o itinerário platônico, nestes termos, a condição de existência do cosmo é uma vontade boa e providente; então a idéia de deuses impessoais e indiferentes fica eliminada como absurda. Este mesmo “modus probandi” passou para a história da filosofia e aparece, por exemplo, na quinta via tomista, a da providência, no livro IV Tratado do Primeiro Princípio de Duns Scotus e até, ao menos em germe, no Ser e Deus de Lorenz B. Puntel.
A “terceira prova”, (Leis 907a-c) visa refutar a idéia de que os deuses possam ser “subornados”. Tomando a idéia explícita dos deuses como sumamente virtuosa e a implícita de suma virtude, a idéia de aceitação de suborno fica totalmente exclusa da esfera do divino. Logo Deus (ou os deuses) não podem ser subornados. Esta noção aparecerá, de certa forma, no cristianismo, nas doutrinas referentes à Graça e, principalmente, na idéia de “Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus.” (Mt. 4:7). [N.E.]
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