Por A.E. Taylor
Tradução de Johann Alves
Notas e comentários de Helkein Filosofia
O terceiro livro d’As Leis termina com a declaração de que Clínias e seu amigo estão, de fato, visitando o local proposto para a nova cidade, durante o convite ao ateniense para ajudá-los continuando, enquanto caminham, seu discurso sobre a legislação. No Livro IV, Platão imediatamente oferece-nos uma lição acerca da composição de constituições. O primeiro requisito é estar bem-informado quanto a topografia, o clima, os recursos econômicos do Estado que legislaremos e o caráter de seus habitantes. A constituição e a legislação devem, é claro, ser adaptadas a todas essas condições; Platão não é um construtor de utopias, mas um pensador extremamente prático.[1] No caso presente, ele assume que o território da Cidade imaginada é variado: contém áreas aráveis, pastagens, florestas e assim por diante, em quantidade razoável, mas não é extremamente fértil. Em termos de localização, a Cidade fica a algumas milhas do mar, embora haja um local em seu território que seria um bom porto. Não tem vizinhos muito próximos. Tais condições são assumidas porque, sem elas, algumas das características que Platão considera mais desejáveis na vida nacional não poderiam ser garantidas. Ele quer que seu território seja variado para ser o mais autossuficiente possível e independente de importações; ele quer que não seja excessivamente fértil, principalmente para excluir o surgimento de produção para o mercado estrangeiro, e, por razões muito semelhantes, fica feliz que não haja fácil acesso ao mar, a grande via do comércio. Sua objeção é ao influxo de grandes corpos de comerciantes estrangeiros, cuja presença ameaçaria a estabilidade das tradições nacionais. (Não haverá Pireu.) Platão também quer excluir um grande comércio de exportação, porque não deseja que o espírito da comunidade seja comercializado. Um perigo adicional é que, como a própria Atenas, o desenvolvimento do comércio marítimo levará ao crescimento da marinha, e, com ela, ao crescimento do “imperialismo” agressivo. Isso explica o motivo da longa passagem em que argumenta-se, contra a opinião comum, que o surgimento de Atenas como potência marítima foi sua maior desgraça (705d—707d). Esta também foi a opinião de Isócrates, e parece ser verdadeira, apesar da glorificação costumeira de Temístocles e Péricles. Foi o espírito do imperialismo comercial que levou, diretamente, à tentativa de Alcibíades e seus admiradores de criar um império ateniense no Mediterrâneo ocidental e arruinou, irremediavelmente, a democracia pericleana.[2] A história de Atenas explica por que Platão deseja que uma sociedade moralmente saudável seja agrária ao invés de industrial, assim como Ruskin, Carlyle e Morris o desejaram para a Inglaterra. A composição dos futuros habitantes por convite de colonos de toda a Creta e do Peloponeso visa outra vantagem: como os cidadãos vêm de diferentes regiões, terão diferentes tradições, e isso significará que um legislador não terá que combater o mesmo peso morto do conservadorismo pouco inteligente (708d).
No entanto, qual seria a oportunidade mais favorável para a criação de um sistema de leis e instituições completamente sólido? Embora o comentário pareça paradoxal, a melhor chance seria oferecida pela cooperação de um estadista completamente sábio com um “tirano”, mas o segundo teria que ser jovem, inteligente e dotado duma nobreza moral incomum (709e). A idéia é que, nesse caso, o estadista teria mais autonomia. Ele só precisaria convencer o autocrata de seus planos e o restante da sociedade seguiria o exemplo, em parte por lealdade, em parte pelo autocrata possuir a força necessária para conter os insatisfeitos. Ele também deve ser jovem, além de inteligente, pois haveria de ser conquistado para tal empreendimento: um homem mais velho, porém, seria menos impressionável. Ele deve ter nobreza moral, porque será chamado a sacrificar sua própria posição como autocrata, se a combinação de autoridade e “liberdade” for realizada. É improvável que haja, alguma vez, uma conjuntura como a associação, numa época e num lugar, de um estadista supremo com um jovem autocrata de qualificações tão incomuns, mas não podemos dizer que a coisa é impossível (711d). Assim, podemos imaginar que a condição foi realizada e considerar quais instituições o estadista com tal força à sua disposição provavelmente recomendaria.[3]
Se um homem com um gênio para ser um estadista alguma vez tivesse a oportunidade de colocar suas concepções em prática, ele, conforme os princípios já postulados, tomaria cuidado para não estabelecer uma constituição “pura” de qualquer um dos três tipos conhecidos no mundo grego.[4] Isso seria criar uma soberania de uma pessoa ou classe favorecida sobre uma classe, ou classes subordinadas. Numa verdadeira “constituição”, o soberano não é o interesse de classe, mas Deus, e a voz pela qual Deus torna Seus comandos conhecidos é a lei.[5] Portanto, o princípio fundamental de um bom governo é que o soberano não seja uma pessoa ou uma classe, mas uma lei impessoal (713e). Em tal sociedade, a autoridade será concedida pela superioridade não em nascimento, riqueza, ou força, mas no serviço sincero à lei; seu mérito será a lealdade às leis. O ateniense, portanto, imagina-se na posição de um legislador falando na presença do corpo de cidadãos pretendentes, e começa um discurso sobre a majestade da lei (715e-718a); a abertura deste discurso é, talvez, o “texto” citado com mais freqüência pelos platonistas da antiguidade posterior: Deus persegue eternamente o “curso regular do Seu caminho”, e a Justiça o acompanha; aquele que deseja ser feliz deve segui-los com um espírito “humilde e disciplinado” (ταπεινòς καì κεκοσμημένος). Seguir a Deus significa ser como Ele, que é a verdadeira “medida de todas as coisas” (716c). Somos como Deus à medida que seguimos a vida retamente medida.
Na vida retamente medida, medida, a reverência (τιμἠ) deve ser concedida, na ordem correta, aos seus vários destinatários: primeiro aos deuses do mundo superior e à nossa cidade, em seguida aos [deuses] do mundo inferior, e depois aos “espíritos e heróis”; então aos ancestrais e pais falecidos, e, por último, aos nossos pais vivos; ao honrar esses últimos, devemos lembrar que os sustentar com nossos recursos é o menor dos deveres; servir-lhes com nossos corpos é algo mais, dar-lhes o afeto e a devoção d’alma é o grande feito. Não podemos fazer o bastante por eles enquanto os temos conosco; quando morrem, o funeral mais modesto é o mais decente e honroso. Neste ponto, o discurso sobre os deveres da vida é interrompido, para ser retomado no livro seguinte. O motivo da interrupção é que o orador lembra que existem dois tipos possíveis de lei, uma breve e outra mais longa. O tipo breve de lei é o que está em comumente voga. Consiste em um comando — ou proibição — acompanhado de uma “sanção” sob a forma de uma pena ameaçada para o não cumprimento. O sábio legislador, no entanto, não desejará a obediência por via da ameaça, preferindo, antes, conquistar o coração dos súditos, restringindo a coação apenas para o pior tipo de cidadão. Se olharmos para a prática dos médicos, veremos que existem dois tipos entre eles. Há os meramente empíricos, geralmente eles próprios escravos com escravos como pacientes, que dão uma prescrição acompanhada de uma ameaça caso o paciente a desconsidere. Há os médicos ilustres, homens educados com homens educados como pacientes; eles explicam ao paciente a natureza de seu tratamento e o propósito de suas regulamentações e fazem tudo o que podem para que ele ajude na cura. É o método deles que deveria ser adotado pelo legislador. Portanto, é mister que ele anteceda toda sua legislação e suas seções principais com “preâmbulos” explicando o propósito de suas regulamentações e os motivos pelos quais tais penalidades são apropriadas para seu descumprimento, e assim conquistar a simpatia da sociedade para quem legisla (719c—720e). Desse modo, ao decretar que um homem deve casar-se antes de atingir uma determinada idade, sob pena estar sujeito à multa ou à perda de direitos civis (ἀτιμία), ele enfatizaria a razão da lei, nomeadamente, garantir a imortalidade da raça,[6] e a razão para selecionar apenas essa “sanção”, nomeadamente, que o homem que negligencia esse dever com o fim de poupar-se de despesas será atingido em seu bolso, e que o homem que não fez nada para deixar uma geração mais jovem não partilhará das honras que esperamos que a geração mais jovem preste aos seus pais (721a—d). Portanto, podemos considerar o discurso interrompido sobre os “seres merecedores de reverência” e os respectivos graus em que são merecedores dela, como a abertura de um preâmbulo geral para toda a nossa legislação.
O Livro V, em suas páginas iniciais, contém a continuação do grande preâmbulo (726—734d). Da reverência aos pais, passamos à reverência ou respeito devido a nós mesmos e aos nossos semelhantes. A regra da autorreverência é que a alma é mais importante que o corpo, e este é mais importante que suas posses. Um homem deve valorizar sua alma mais que seu corpo, e seu corpo mais que seus “bens”. Desonramos nossa própria alma quando colocamos o vigor e a saúde corporal, o poder ou as riquezas, antes da sabedoria e da virtude, ou quando satisfazemos caprichos ou paixões indignas. Desonramos o corpo quando preferimos a riqueza à saúde. A visão de Platão é que uma beleza, uma robustez ou uma riqueza extraordinária são prejudiciais à alma, de modo geral, não menos do que a feiúra, a deformidade, a má saúde e a pobreza extraordinária.[7] A primeira gera vaidade, a segunda a luxúria grosseira e a terceira ociosidade e soberba. Em relação às vantagens tanto do corpo quanto da fortuna, a condição intermediária é preferível às extremas. As principais regras para relações corretas com os outros são que, (1) em nossas relações com amigos e concidadãos, devemos avaliar os benefícios que recebemos deles de forma mais alta do que eles próprios fazem, e os serviços que lhes prestamos de forma mais baixa; (2) em relação ao estrangeiro, especialmente ao suplicante, devemos ter um cuidado especial para nos comportarmos da melhor maneira possível, pois nada é tão odioso para o homem e para Deus quanto se aproveitar daqueles que estão indefesos (726—730a).[8]
Segue-se uma exortação quanto ao espírito com o qual um homem deve conduzir-se em questões onde a lei não pode estabelecer comandos ou proibições específicas. A exigência suprema para um homem é a “ἀλήθεια” (veracidade) em todas as relações da vida — na verdade, “lealdade”. Um homem que não seja “verdadeiro e leal” é totalmente indigno de confiança; a falta de lealdade torna a amizade e a felicidade impossíveis. Devemos estabelecer que em todos os pontos da virtude, é bom praticá-los por conta própria, mas é melhor ir além e levar os malfeitos dos outros ao conhecimento das autoridades, e melhor ainda ajudar na punição do malfeitor. Devemos acrescentar que a rivalidade na bondade de todos os tipos é a única forma de competição que devemos incentivar em todos os nossos cidadãos, pois é a única forma de rivalidade que não visa monopolizar um bem para si mesmo, mas comunicá-lo o mais amplamente possível. Quanto às falhas dos outros, um homem bom deve ser misericordioso, sempre que forem passíveis de correção, pois ele sabe que “ninguém é mau de propósito”; ele só deixará sua raiva seguir seu curso com os incorrigíveis. Um homem também deve tomar cuidado com o erro mortal da parcialidade para consigo mesmo. E ele deve reprimir toda tendência ao sentimentalismo desenfreado (726b—732d).
Não devemos esquecer que estamos tentando alistar homens, não deuses, para o lado da virtude. Portanto, devemos considerar o desejo humano universal por uma existência agradável. Não podemos esperar que os homens escolham regularmente a vida nobre a menos que sejam convencidos de que ela também é prazerosa. Sua nobreza já foi demonstrada; Platão agora prossegue para defender que, mesmo pelas regras de um cálculo hedonista, se apenas enunciarmos as regras corretamente e resolvermos a equação, a vida moralmente melhor será também a mais prazerosa. As regras são: desejamos ter prazer e não ter dor; não desejamos uma condição neutra, mas a preferimos à dor. Escolhemos uma dor acompanhada por um superávit de prazer e recusamos um prazer acompanhado por um superávit de dor; somos indiferentes a um equilíbrio exato de prazer e dor. Temos que considerar como “dimensões” do prazer e da dor o “número” e o “tamanho” — ou seja, a freqüência, a duração e a intensidade. Queremos ter uma vida na qual, quando todas essas “dimensões” forem consideradas, o saldo se equilibre do lado do prazer; não queremos ter uma vida na qual o saldo esteja do lado da dor.[9] A vida em que o saldo é zero é preferível àquela em que há um saldo de dor. Se considerarmos quatro pares de vidas, correspondentes às quatro virtudes atualmente reconhecidas e seus vícios contrários — a vida do temperante e a do libertino, a vida do sábio e a do tolo, a vida do homem corajoso e a do covarde, a vida moralmente “saudável” e a moralmente “doentia” — descobrimos que, no primeiro membro de cada par, há menos excitação do que no segundo; os prazeres e as dores são menos intensos, mas ao mesmo tempo esses prazeres são mais freqüentes e duradouros do que as dores, ao passo que, nos segundos membros dos pares, as dores são mais numerosas e duradouras do que os prazeres. Assim, em cada caso, o saldo é do lado do prazer no primeiro membro do par, e do lado da dor no segundo. Esta é a prova de Platão de que, se o cálculo for feito de maneira justa, a vida melhor prova ser também a mais prazerosa. Sua superioridade moral, devemos lembrar, não é identificada nem inferida de seu maior prazer, mas é considerada já estabelecida independentemente (732e—734e). Isso nos leva ao fim do nosso prelúdio geral à legislação.
Há, ainda, uma questão a ser tratada antes de considerarmos a legislação em detalhes: a criação das magistraturas necessárias. Os magistrados são, por assim dizer, a urdidura, e o restante dos cidadãos, a trama do tecido que devemos tecer. A urdidura deve ter uma constituição mais forte e resistente, deve ser composta por aqueles elementos da população que possuem maior força de caráter e são menos maleáveis. Começamos estabelecendo (737c) que o tamanho da comunidade, o número de lares, deve ser mantido permanente. (Queremos excluir as revoluções sociais que seriam produzidas tanto por um declínio acentuado quanto por um aumento marcante da população.) Precisamos ter exatamente uma população que nosso território possa sustentar com industriosidade e sobriedade, nem mais nem menos. Se a população crescer além desse limite, começará a se expandir à custa de prejudicar seus vizinhos; se cair abaixo dele, não será adequada para sua própria defesa. O número real de lares dependerá do tamanho do território, mas, para fins de ilustração (737e), podemos imaginar que ele seja fixado em 5040, um número que se recomenda pelo fato de ser divisível por todos os inteiros até 10.[10] Isso é conveniente, pois pode haver razões práticas para desejar dividir os habitantes em grupos administrativos para diversos fins.[11]
Podemos dizer de uma vez que a melhor e mais feliz de todas as sociedades seria aquela onde não houvesse interesse “privado”, onde até mesmo esposas e filhos fossem “comuns” e a palavra “meu” nunca fosse ouvida (739c). O que estamos descrevendo, agora, é uma sociedade que deve se aproximar mais deste ideal, um ideal possível talvez apenas para seres que são mais que humanos (θεοì ἢ παîδες θεῶν, 739d).[12] Para esta “segunda cidade” devemos estabelecer que a terra não deve ser cultivada em comum; devem existir propriedades privadas e casas, como uma concessão à fraqueza humana, mas o proprietário de um patrimônio deve sempre o considerar como pertencente tanto à “Cidade” quanto a ele mesmo. Será uma obrigação religiosa que o número de “lares” seja sempre o mesmo.[13] Um patrimônio deve sempre ser transmitido indivisivelmente a um filho, escolhido por seu pai, que manterá o culto doméstico. As filhas devem ser providas através do casamento e, para garantir seu casamento, haverá uma lei contra dar ou receber dotes (742c). Os filhos restantes de um homem serão providos incentivando a adoção por parte dos que não têm filhos ou daqueles que perderam seus filhos. Platão está, assim, ciente de que seu esquema exige que a família normal seja de dois filhos. A tendência ao excesso de população será contrabalançada por “persuasão moral” (740d) ou, em último caso, enviando colônias (não são contemplados, aparentemente, métodos “artificiais” de controle de natalidade). A inevitável despovoação por epidemias e semelhantes pode ser enfrentada, ainda que com relutância, convidando novos colonos.
Será, infelizmente, impossível evitar completamente as desigualdades econômicas, mas elas podem ser mantidas nos limites, e tanto a penúria quanto a riqueza irresponsável podem ser excluídas pelas seguintes regulamentações. Os patrimônios devem ser, dentro do possível, de valor igual (737c); para garantir que permaneçam inalienáveis na mesma família,[14] será feito um levantamento cuidadoso de todo o território, que será preservado nos arquivos públicos (741c). Para evitar a contaminação pelo comercialismo, o Estado terá sua própria moeda, sem valor fora de seu território, e será um crime para um cidadão possuir a moeda cunhada de uma cidade estrangeira (742a).[15] Não haverá empréstimo de dinheiro a juros, nem crédito (742c).[16] A razão para isso é simplesmente que não queremos incentivar um homem a viver do retorno automático de investimentos; queremos que ele seja um agricultor vivendo do trabalho de suas próprias mãos. A acumulação será controlada pelo estabelecimento de quatro classes econômicas, onde os mais pobres não possuem nada além de seu patrimônio, e os mais ricos são permitidos possuir no máximo quatro vezes o rendimento do patrimônio. Qualquer aumento adicional de riqueza será revertido para o Estado (744d—745a). Assim, a riqueza terá algum peso, assim como o caráter e a origem, na distribuição de cargos. Isso é lamentável, mas é uma condição que não podemos excluir completamente (744b).
A comunidade será dividida em doze “tribos”,[17] tomando-se o cuidado de que a propriedade total das tribos seja aproximadamente igual e que suas posses sejam igualadas. Cada patrimônio será dividido em uma metade situada mais próxima e outra situada mais distante da cidade, que deve ter uma posição central, e devemos cuidar para que essa divisão seja feita de forma justa, de modo que, por exemplo, um homem que tenha a vantagem de ter metade de sua propriedade próxima à cidade tenha a outra metade nos arredores do Estado (745b—e). Em relação ao tópico de subdivisões e medições, Platão demonstra seu interesse prático em pequenos assuntos ao insistir expressamente na importância de uma padronização rígida da moeda e de todos os pesos e medidas (746e),[18] com o objetivo, é claro, de suprimir a possibilidade de pequenos ganhos desonestos. É um preconceito não-filosófico supor que o olho da lei deve ser cego para tais coisas. A aritmética tem o mais alto valor, desde que seja perseguida com um espírito não contaminado pelo comercialismo dos fenícios e egípcios (747a—c).[19]
O Livro VI nos traz, finalmente, à nomeação dos diversos magistrados e conselhos administrativos. Devemos nos contentar aqui em descrever os mais importantes dentre eles e o método pelo qual são constituídos, como ilustrativo da visão de Platão sobre a “representação.” A prática de magistratura ordinária mais importante é dos νομοΦύλακες ou guardiões da constituição, um corpo de trinta e sete homens de caráter e inteligência comprovados, que devem ter pelo menos 50 anos de idade na nomeação e devem se aposentar aos 70 anos. Suas funções são vigiar os interesses das leis em geral e, em particular, cuidar do registro de propriedades, penalizar e “colocar na lista negra” qualquer cidadão culpado de ocultação fraudulenta de renda. Eles também figuram como os magistrados presidentes no julgamento de crimes graves de vários tipos. Eles devem ser eleitos por votos escritos e assinados com o nome do eleitor (como precaução contra um voto irresponsável), e a eleição tem várias etapas, pelas quais os trezentos nomes inicialmente selecionados são finalmente reduzidos a trinta e sete (três para cada “tribo”, com um homem a mais para evitar uma divisão igual de opiniões).
O grande conselho ordinário, a “câmara representativa” da sociedade, é eleito por um plano engenhosamente concebido para eliminar a “consciência de classe” extrema e tornar impossível o tráfico de influência e a conspiração. Ele deve consistir, em última instância, de 360 membros, noventa de cada uma das quatro classes de propriedade, mas a seleção tem várias etapas e se estende por uma semana. No primeiro momento, 360 representantes de cada classe são escolhidos, com a votação ocorrendo em quatro dias. Os cidadãos das duas classes mais ricas são obrigados, sob pena, a votar nos representantes de todas as quatro classes. Os cidadãos da terceira e quarta classes são obrigados a votar apenas nos dois primeiros dias e podem ou não votar nos dois últimos dias, conforme desejarem. (A idéia é que eles provavelmente se absterão, pois já perderam dois dias de trabalho e não quererão perder mais dois. Assim, como os cidadãos mais pobres serão mais numerosos, os representantes das duas classes mais ricas serão eleitos por um voto em que as classes mais pobres terão mais influência; os das classes mais pobres serão escolhidos principalmente pelos votos dos mais ricos. Isso significa que os nomes selecionados serão de homens moderados de todas as classes; nem um Coriolano, nem um Cade terão muita chance de eleição. Isso garante que todo o corpo seja de espírito público, justo e propenso a cooperar harmoniosamente.) Na segunda etapa do processo, o número de nomes é reduzido à metade por um voto que deve ser exercido obrigatoriamente por todos os cidadãos. (Um extremista que possa passar pela primeira eleição seria provavelmente eliminado nesta etapa, e, como a votação é obrigatória para todos, o perigo de que as classes mais ricas possam transformar a representação dos mais pobres em uma farsa induzindo seus concidadãos mais pobres a se absterem de votar para os membros de sua própria classe também é reduzido ao mínimo.) Finalmente, os números são novamente reduzidos à metade pelo uso do sorteio. (Esta seria uma precaução final contra manobras eleitorais.) O conselho assim nomeado exerce o cargo por um ano, com um-doze-avos [1/12] dele formando um comitê que exerce as principais funções de soberania a cada mês.
A principal crítica que um pensador moderno provavelmente faria ao esquema é que ele arrisca tornar o extremista ainda mais perigoso ao não lhe dar chance de expor suas queixas no “concílio da nação”. Mas pode ser dito que estamos aprendendo com a experiência como é difícil para o mesmo corpo combinar as funções duma “válvula de escape” e dum conselho nacional realmente eficaz.
O cargo mais importante em uma comunidade platônica é, como deveríamos esperar, o de Ministro da Educação. O bem-estar da comunidade depende diretamente do caráter da educação dada às gerações sucessivas, e o supervisor da educação deve, portanto, ser o melhor e mais ilustre homem da comunidade, ocupando o posto mais responsável. Ele deve ser um homem com mais de cinqüenta anos, com filhos próprios, e deve ser eleito por um período de cinco anos a partir do corpo dos νομοΦύλακες pelos votos dos outros magistrados (765d–766b). O “Presidente do Conselho de Educação” é, assim, o “primeiro-ministro” na comunidade de Platão.
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Notas:
[1] Caso análogo ao da interpretação moderna da república, quando o zetema, i.e., modelo explicativo idealizado, é tomado como projeto político de viés prático. Platão jamais visou uma utopia, modelo ideal de ordem cuja concepção exige certas condições que a tornam irrealizável e, daí, sua viciosidade. [N.E.]
[2] É claro que os atenienses não tinham culpa de serem uma potência naval. Tinham de o ser, porque, tal como nós, precisavam importar seu trigo. Mas a necessidade de possuir uma frota poderosa conduzia inevitavelmente à tentação de a utilizar para fins de engrandecimento egoísta. [N.A.]
[3] Por que Platão não sugere que o estadista supremamente sábio deva ele próprio nascer herdeiro do trono? Presumivelmente porque a sabedoria de um estadista só vem com os anos e a experiência. Mas um monarca experiente de idade avançada não teria nem o entusiasmo nem a completa liberdade do interesse próprio exigidos do autocrata que deve empregar sua posição para suprimir a si mesmo. Portanto, a sabedoria deve ser a de um homem que não tem que lutar com as tentações insidiosas do interesse próprio, o entusiasmo daquele que não perdeu o primeiro brilho da juventude. [N.A.]
[4] Platão exclui, aqui, os modelos expostos na República. A pólis das Leis assume características realmente aplicáveis e, em verdade, parte do modelo da cidade das Leis é retirado de exemplos reais. [N.E.]
[5] “Aos nossos olhos a divindade será ‘a medida de todas as coisas’” Platão – AsLeis 716c [N.E.]
[6] Esse pensamento, que já havia aparecido no Banquete, não tem qualquer relação com a doutrina da imortalidade da alma. É o homem — o complexo de alma e corpo — de quem Platão diz que a sobrevivência nos seus descendentes é o mais próximo que ele pode chegar da imortalidade. A ψυχἠ separada do corpo não é ᾄνθρωποσ, mas apenas ψυχἠ, um “espírito”. [N.A.] Raça refere-se, naturalmente, à “raça humana”. [N.E.]
[7] Todas estas qualidades podem ser usadas para autodestruição, como podemos observar na alta burguesia moderna ou no show business. [N.E.]
[8] Platão está, aqui, muito próximo da concepção dos pecados que clamam pela vingança divina no cristianismo: homicídio intencional, sodomia, opressão dos pobres e privar os trabalhadores do seu salário.
[9] Platão, aqui, antecipa e anula as contribuições do epicurismo. [N.E.]
[10] Conforme explicado por Coulanges em seu A Cidade Antiga, a delimitação das cidades possuía, em razão de seus marcos dotados de simbolismo religioso, caráter sagrado. [N.E.]
[11] 5040 = 7! (o produto contínuo dos inteiros de 1 a 7). Platão escolheu esse número porque, como 7 é o maior número primo menor que 10, e os números 8, 9 e 10 são, cada um, produto de um par de fatores em que cada fator é menor que 7, 7! será obviamente divisível por todos os inteiros até 10. Também será divisível por 12 (2 x 6); e isso é uma grande conveniência, já que 12 é o número de meses no ano. A nota de Ritter sobre a passagem aponta corretamente que a razão para escolher tal número é estritamente prática; isso evita qualquer dificuldade em determinar a cota exata que uma subdivisão particular da população deve contribuir para a receita ou para as defesas. [N.A.]
[12] Platão permanece aderindo ao ideal moral da República, embora pareça dizer definitivamente que este não pode ser realmente incorporado em carne e osso. Pode-se duvidar se ele alguma vez pensou de outra forma. De qualquer maneira, ele agora considera um sistema de propriedade camponesa com patrimônios inalienáveis como a sociedade na qual homens e mulheres comuns provavelmente demonstrarão mais o espírito de devoção ao “bem” comum. [N.A.]
[13] Devemos ter em conta, novamente lembrando do ensinamento de Coulanges, que a idéia de propriedade no mundo antigo pouco tem que ver com a de propriedade privada em sentido moderno. [N.E.]
[14] Novamente, no mundo antigo, devido ao caráter sacro dos bens da família que, em certo sentido, pertenciam também ao espírito de seu ancestral que habitava naquele território mediante o fogo sagrado, não poderia “passar de mão em mão” conforme ocorre na modernidade. [N.E.]
[15] Uma regulamentação baseada na prática espartana, também proposta por Fichte em seu Geschlossener Handelsstaat (O Estado Comercial Fechado) [N.A.]
[16] A economia antiga não reconhecia os juros ou a renda via “dividendo” como forma lícita de enriquecimento. Tal concepção durou, pelo menos, até a idade média. [N.E.]
[17] O número é selecionado pela conveniência prática de facilitar a rotação de um cargo ou dever através de todas as tribos ao longo de um ano. O ano oficial deve ter 365, não 360, dias — uma reforma nunca adotada por nenhuma “cidade” grega real até uma data posterior (828b). [N.A.]
[18] Ritter, ad loc., chama corretamente a atenção para o ponto de que Platão está aqui, pela primeira vez, apontando a necessidade de regulamentações desse tipo, que eram desconhecidas na prática helênica. [N.A.]
[19] Devemos ter em conta que Platão considera a matemática como nexo da organização do cosmo, e, por isso, a cidade da República e das Leis deve refletir a medida cósmica. [N.E.]
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