Por Robert McMahon
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
Um tratado, enquanto sob controle de seu autor, pode servir para analisar a dialética entre a graça e a liberdade, mas não pode encarná-la; apenas a textura meditativa de uma diálogo espontâneo com Deus pode fazer isso e, assim, as Confissões unem num todo indissolúvel logos e ergon, forma e conteúdo, e seu desdobramento mesmo manifesta a interação dinâmica da busca do homem por Deus e a graça divina que o atrai para si.
Voegelin trata de uma indissolubilidade semelhante ao tratar do que ele chama de “história”[1] e, como sempre, reflete acerca da descoberta e da comunicação da “verdade da realidade” que, por conseguinte, não é algo como meramente o conteúdo de algum conhecimento, mas uma verdade a ser vivida e, ao sê-la, traz consigo a ordem reta à pessoa e à sociedade ao harmonizá-las com a “realidade”, aquele grande contexto que confere sentido às nossas vidas.[2] “A história”, comenta Voegelin, “é a forma simbólica que o questionante necessariamente adota quando se dá conta de sua perquirição como o processo de luta pela resposta de sua busca [humana] pelo movimento divino, pela verdade da realidade a partir de uma realidade prenhe de verdades ainda não reveladas”.[3] Expliquemos os termos técnicos em itálico: o “movimento divino” origina uma “resposta humana” pois o homem, enquanto busca harmonizar-se com a “verdade da realidade”[4], questiona-a em sua busca por viver uma vida verdadeira. Este inquiridor, por conseguinte, experimenta uma espécie de epifania, revelação ou conversão, algum evento que muda sua vida e, assim, seu relato de tal evento toma a forma de uma história na medida em que a mudança em sua vida implica um “antes” e um “depois” numa sequência narrativa. Assim, a história encarna o paradoxo da consciência em ação: o movimento divino engendra o evento – ou epifania – ao modo de uma luminosidade; a resposta humana a este movimento manifesta-se numa narrativa ao modo de uma intencionalidade; mas a história mesma é simultaneamente um evento luminoso e uma narrativa intentada,[5] sendo que ambos os eventos não podem ser separados ainda que possam ser distintos. Sem o evento da busca, não se pode compor uma narrativa e, sem uma narrativa, o evento não pode ser eficaz na sociedade e na história; a “história” do inquiridor une, indissoluvelmente, o evento divino-luminoso com a narrativa humana-intentada; por conseguinte, sua linguagem é simultaneamente luminosa e intentada, divina e humana.
As Confissões de Sto. Agostinho encarnam, em si, a compreensão voegeliana da “história”, mas sua textura meditativa enquanto oração a encerra num nível superior. Imaginemos, por exemplo, as Confissões antes como uma autobiografia espiritual do que como um diálogo orante com Deus e, então, os livros 1-9, seguidos do livro 10 e do tratamento do Gênesis nos livros 11-13 ainda comporiam uma “história” em sentido voegeliano. A conversão do jovem Agostinho à fé cristã, com seu antes e seu depois, continuaria como evento crucial, com seu “antes” tratado a partir das perspectivas geradas a partir deste evento, digo, na perspectiva do cristão amadurecido que vê sua juventude pré-cristã como uma viagem errante em direção à fé; o “depois” surgiria, da mesma forma como refletido por Sto. Agostinho segundo seu estado atual (Livro 10) engajado em sua tarefa, enquanto bispo, de expositor das Escrituras (Livros 11-13). O evento luminoso da conversão agostiniana informaria, implicitamente, toda a narrativa intentada em toda a obra, tornando-a a “história” de uma resposta humana ao movimento divino.
Mas as Confissões são, desde suas primeiras palavras até as últimas, um diálogo com Deus e, enquanto oração encerram, momento a momento, uma resposta humana ao movimento divino: o evento luminoso da fé não é meramente uma conversão passada que implicitamente informa a obra mas, por outro lado, o evento do movimento divino manifesta-se explicitamente em cada um dos momentos da oração de Sto. Agostinho [o narrador]. Por conta disso, as Confissões encerram o paradoxo de consciência voegeliano na história: a intencionalidade do narrador humano interage, continuamente, com a luminosidade da presença divina; podemos distinguir os parceiros presentes neste contínuo diálogo, que por sua vez estabelece a dialética entre a liberdade humana e a graça divina, mas não podemos separá-los. Visto que Deus se faz presente interior intimo no coração inquieto de Sto. Agostinho, não é possível separar a resposta do narrador do movimento divino, pois sua presença luminosa atuante na consciência agostiniana torna seu coração inquieto enquanto desejoso de buscar a Deus. Sto. Agostinho, o narrador, pode ser distinto de Deus, mas não separado, pois são parceiros num evento participativo: na textura meditativa das Confissões, o evento luminoso da presença divina entrelaça-se explícita, contínua e inextricavelmente na narrativa intencional de Sto. Agostinho.
Estrutura Meditativa e Movimento Divino
As Confissões se desdobram como uma ascensão cristã de toques platônicos, e faremos bem em recordar suas linhas gerais antes de examiná-las. A ascensão é baseada no esquema exitus-reditus: visto que todos as coisas advém (exitus) de Deus, da mesma forma todas elas (de alguma forma) retornarão (reditus) a Deus; este “retorno à Origem”[6] é, assim, uma “ascensão aos princípios” (ou às “coisas primeiras”): ele move-se, progressivamente, em direção a princípios logicamente anteriores e, portanto, ontologicamente superiores. Estes princípios platônicos não são meras abstrações conceituais, mas universais que denominam regiões do ser e, assim, a ascensão não move-se não apenas em direção a categorias cada vez mais gerais, como ocorre em nossa maneira nominalista de pensar, mas a regiões do ser cada vez mais universais e reais na medida em que compreendem mais amplamente a realidade mesma. Assim, no contexto do movimento meditativo em direção às origens, os caminhos se invertem: ir para a frente [meditação] é o caminho para trás [em direção às origens], e o que vem por último é, realmente, o primeiro [na ordem do ser], assim como o que vem primeiro é [na ordem do conhecer][7], de fato, o último. O platônico chega a estes reinos “acima de si” (supra se) após retornar de seu circuito interno para além das coisas “fora de si” (extra se) em direção ao princípios dentro de si (in se). Em De Vera Religione, Sto. Agostinho insiste neste circuito interno: “não volte-se para fora, mas para dentro de si, pois a verdade habita no homem interior”[8]; a ascensão platônica, assim, move-se não apenas “para cima” mas também “para dentro” em direção a princípios universais ontologicamente mais levados enquanto mais interiores. Desta maneira, o meditante move-se em direção à presença divina interior intimo.
Vejamos como este padrão opera nas Confissões, num primeiro momento enquanto progresso em direção ao que é, lógica e ontologicamente anterior, e num segundo momento enquanto movimento em direção ao interior.[9] Após examinar, em sua autobiografia espiritual (livros 1-9), algumas de suas memórias, Sto. Agostinho [o narrador] explora o tema da memória (livro10) e do tempo no livro 11; as memórias não podem existir ser a memória [ou faculdade de memorização] e esta, por conseguinte, não pode existir sem o tempo. A memória, assim, é lógica e ontologicamente anterior às memórias – com o mesmo ocorrendo na relação entre o tempo e a memória. Assim, o tempo, enquanto condição de possibilidade da memória [faculdade] e das memórias [conteúdo], é anterior e superior a ambos. O livro 12 retoma com maior amplitude a interpretação a agostiniana acerca do “céu e da terra” presentes em Gn.11: ele sustenta que o “céu” refere-se ao “céu dos céus” (12. 8-9), à “criação incorpórea”, e que a “terra” refere-se à “matéria sem forma” da qual o mundo seria feito (12.3-7). Segundo o seu argumento, ambos [o céu e a terra] existem antes do tempo embora não sejam propriamente eternos (12.12-13); antes que o mundo[10] fosse criado não havia tempo, mas o “céu e a terra” jaziam enquanto forma e matérias puras e constituintes pré-temporais do mundo e, assim, segundo o livro 12 das Confissões, lógica e ontologicamente anteriores ao tempo examinado no livro 11.
O livro 13, aquele que conclui a obra, conclui a investigação através da interpretação do significado dos sete dias da criação enquanto forma de alegoria relacionada à criação e crescimento da Igreja (13.12-38). Podemos encontrar um resumo do tratamento do simbolismo dos seis dias no capítulo 34, onde Sto. Agostinho diz: “Examinamos (inspeximus) as verdades que quiseste (voluisti) significar (figurationem) nessas tuas obras; quer criando-as naquela ordem, quer nessa ordem descrevendo-as.” (13.34-49, tradução minha). Sto. Agostinho afirma, em sua alegoria referente à Igreja, que ela revela o propósito para o qual Deus desejou a ordem sequencial seguida na criação ou na história da criação; por estranha que possa parecer, para nós, o ponto defendido por Sto. Agostinho foi inteiramente tradicional. Lemos em O Pastor de Hermas[11] que “o mundo foi criado para o bem da igreja”; lemos ainda nas explicações de Clemente de Alexandria que “assim como a vontade de Deus é criação e chamada “mundo”, também sua intenção é a salvação dos homens enquanto chamada de Igreja”.[12] Deus criou o mundo para o homem e o homem para si para que pudesse compartilhar com ele sua vida. Sendo assim, para Sto. Agostinho, a alegoria do livro 13 revela o propósito divino de criar o mundo e inspirar seu relato em Gênesis; como o propósito é lógica e ontologicamente anterior à ação, a Igreja, enquanto propósito de Deus é, por conseguinte, lógica e ontologicamente anterior à criação – sendo, para além disto, enquanto corpo místico de Cristo, também pode ser entendida como eterna na medida em que precede ao mundo enquanto presente na mente de Deus: perpassará o fim do mundo e terá sua presença num “sábado eterno” (13.35-38). Por conseguinte, o propósito divino ao levar a cabo a criação é lógica e ontologicamente superior à criação mesma; assim a ascensão meditativa de Sto. Agostinho chega ao limite e as Confissões se encerram.
Consideremos a progressão do movimento interior à tal ascensão: ele é evidente no progresso mnemônico presente nos livros 1-9 que desemboca no tema da memória no livro 10 na medida em que a faculdade da memória mostra-se mais profunda do que seu conteúdo – aos olhos de Sto. Agostinho, o poder inato da [faculdade da] memória é subjacente e, assim, governa [o conteúdo de] nossas memórias. O progresso interior da ascensão agostiniana emerge nos capítulos finais, livros 11-13, por exemplo, quando Sto. Agostinho conclui, no livro 11, que o tempo contém a memória como um de seus aspectos. Postulando que exista apenas o presente, Sto. Agostinho analisa o tempo do ponto de vista psicológico[13] enquanto “atenção” (attentio; 11.28) voltada às coisas: a memória é a atenção às coisas presentes; a expectativa a atenção às coisas futuras; por conseguinte, a atenção é necessária à memória mas, antes disso, o é mais profundamente à alma. Não poderia haver memória alguma sem o poder da atenção enquanto a subjaz e governa.
Do tema da “atenção”, no livro 11, a ascensão volta-se à “vontade” (voluntas) nos capítulos finais do livro 12; após tratar de suas várias outras interpretações acerca do trecho de Gênesis sobre o “céu e a terra”, nos capítulos 2-22, Sto. Agostinho [o narrador] passa a refletir sobre princípios hermenêuticos, todos eles voltados para o desejo (voluntas) dos intérpretes que procuram entender as intenções (voluntas) de Moisés e de Deus em Gênesis 1 (12.23-24). O livro 12 se encerra com a oração de Sto. Agostinho para que entenda “o que a tua verdade desejou (voluerit) comunicar-me (na Escritura) através das palavras dele (Moisés), como ela mesma quis (voluit) revelar a ele” (12.32.43). A direção da atenção claramente depende da vontade, visto que ela é um princípio anterior, mais importante e mais poderoso do que a atenção na medida em que se encerra na profundeza da alma; o progresso agostiniano da “atenção”, no final do livro 11, para a “vontade”, no final do livro 12, marca um movimento em direção ao interior da alma. O livro 13 encerra-se, como visto, com o propósito divino da criação; evidencia-se que a vontade de Deus (voluisti; 13.39-49) é anterior e superior à vontade (voluntas) humana. Ao mesmo tempo, o propósito divino na criação é a Igreja enquanto instrumento para que compartilhe com o homem, feito à sua imagem, sendo que o desejo pelo divino jaz em nós enquanto presença interior intimo na inquietude do coração humano: “fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti.” Esta fórmula aponta para a Igreja, visto que não apenas o coração humano jaz inquieto [enquanto desejoso de Deus] mas também aquele único coração do corpo místico [de Cristo, a Igreja] que busca descanso na presença divina; na Igreja, a criação divina continua na providência que guia nosso coração em direção a seu descanso eterno. Quando Sto. Agostinho, no final do livro 13 das Confissões, reconhece a Igreja como propósito divino na criação, reconhece também o aspecto mais profundo de si mesmo, e eis aqui o fundamento divino do anseio que anima sua vontade (livro12), sua atenção (livro 11) e sua memória (livro 10). Não é possível que vá mais adiante [para dentro], pois seu íntimo é seu superior na medida em que Deus é “interior intimo meo et superior summo meo” (3.6.11). Assim como Deus guiou o jovem Agostinho [apesar de todos os seus erros deste] à fé cristã, Sto. Agostinho [o narrador] guia as Confissões, apesar de todos os seus percalços, numa ascensão que culmina na visão do propósito divino da criação e da forma como Deus dirige os homens [apesar de todos os caprichos destes] à salvação. A providência que guia a vida de Sto. Agostinho e seu diálogo com Deus o leva, finalmente, a visualizá-la [a providência] que guia toda a história humana e, assim, a vida e as Confissões de Sto. Agostinho provam, no fim das contas, as instâncias capitais da Igreja naquele movimento universal divinamente guiado que se inicia antes do tempo e se encerra para além dele. Assim, a alegoria do livro 13 completa a compreensão agostiniana do coração inquieto apresentada no primeiro capítulos das Confissões: a estrutura meditativa da obra vai, progressivamente, se aprofundando e, quanto mais universal se torna, maior é sua autocompreensão. Sto. Agostinho, assim, nos faz reconhecer aspectos cada vez mais profundos de nós mesmos e, neste movimento, passamos a nos ver como ele nos vê, marcados por nossa origem, inquietude e finalidade em Deus. Para Sto. Agostinho, nas Confissões, a Igreja é ao mesmo tempo a forma mais profunda, elevada e universal do autoconhecimento humano.[14]
Voegelin transpõe a Igreja agostiniana, do “mundo conhecido” do finado Império Romano, para o contexto moderno e pluralista.[15] Neste sentido, a Igreja é meramente uma versão do movimento divino-humano universal que manifesta-se sob várias formas.[16] O “movimento”, como antevisto, é um termo técnico voegeliano dotado de duplo significado: por um lado o movimento divino encontra a resposta humana numa “história” adequada, atraindo outros seres humanos para sua verdade e assim se torna social e histórico[17]; o evento do movimento divino atuante na resposta humana torna-se eficaz na sociedade e na história pois os homens procuram viver verdadeiramente e, destes, pelo menos alguns encontram suas vidas iluminadas pela história desse movimento luminoso.[18] A verdade da história une-os, num movimento social[19] e, portanto histórico. Mas houve muitos movimentos deste tipo, em todo o mundo e no decorrer da história; há uma “pluralidade de missões, contando uma pluralidade de histórias”, e todas elas verdadeiras.[20] Nenhuma delas é “literalmente” verdadeira pois, como antedito infinitamente desde o Iluminismo, suas narrativas intencionais diferem – mas todas são verdadeiras na medida em que aprendemos a ver como suas histórias apontam, simbolicamente, para a experiência do movimento luminoso e divino na consciência humana.[21]
Voegelin criou uma terminologia filosófica para que pudesse tratar da unidade subjacente a esta pluralidade de histórias verdadeiras mesmo quando trabalhou para descobrir e definir as diferenças entre os diversos símbolos.[22] Ele focou principalmente ao modo como os simbolismos da revelação, em Israel, e da filosofa, na Hélade, emergiram do mito cosmológico e relacionaram-se como ele; mas também estudou o surgimento da historiografia na China antiga e dos Upanishads na índia.[23] Em todas essas formas simbólicas ele encontrou a verdadeira história da resposta humana ao movimento divino; as simbolizações diferem apenas segundos os contextos culturais, assim como diferem as nuances da experiência. Na filosofia grega, a título de exemplo, a busca humana é apresentada enquanto movida pelo fundamento divino, enquanto no profetismo hebraico enfatiza-se a irrupção divina no homem.[24] O trabalho de Voegelin é dificultoso, em grande parte, por ele ter tido de inventar uma terminologia que com a unidade da experiência e tipologia dos simbolismos em linguagem propriamente filosófica: religiosamente neutra, semanticamente precisa e experiencialmente abrangente. Mas esta terminologia advém da referência a seus grandes predecessores que também lidaram com os mesmos problemas em seus próprios contextos; ele elogia Sto. Agostinho por estar “ciente de que a estrutura da história é a mesma da existência pessoal”, admirando, em especial, esta fórmula apresentada em Enarrationes in Psalmos 64.2: “Começa a sair quem começa a amar. Pois, muitos saem ocultamente, e os pés dos que saem são os afetos do coração; e saem de Babilônia.” Neste trecho, “os símbolos históricos do Êxodo da Babilônia expressam o movimento da alma quando atraída, pelo amor, para Deus”.[25] Eis uma versão da resposta humana ao movimento divino que se manifesta pessoal e universalmente, simbolizando um movimento ao mesmo tempo divino e humano, pessoal e coletivo. O mesmo movimento é simbolizado, como antevisto, nas Confissões: “fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”. O mesmo espírito anima ainda a fórmula voegeliana: “O homem participa do processo da realidade”.[26] A proposição voegeliana abrange o movimento divino-cósmico simbolizado em rituais e mitos,[27] assim como o é o movimento divino-humano na história, que manifesta-se nos símbolos filosóficos, revelados e outros. Através destas formas que os homens participam do processo da realidade, harmonizando-se conscientemente com ela de forma a alcançar sentido e ordem em suas vidas. Em suma, para Voegelin, os simbolismos espirituais de todo o mundo e sua história revelam um movimento divino-humano universal – sendo a igreja de Sto. Agostinho um dos exemplos.[28]
Referente às questões fundamentais, por conseguinte, há um profundo acordo entre Sto. Agostinho nas Confissões e a filosofia voegeliana; por diferentes que o sejam em sua terminologia, o substrato existencial de seu ensinamento mostra-se equivalente.[29] Poderíamos dizer que Sto. Agostinho foi um cristão voegeliano tardio-antigo e Eric Voegelin um agostiniano tardio-moderno. Ambos concordariam, ao menos em última análise, que toda natureza e atividade humana, destino pessoal e história universal, podem ser resumidos em duas afirmações: “fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti” e “o homem participa do processo da realidade”.[30]
***
Nota do Tradutor: todos os trechos de Confissões foram substituídos pelo texto presente na edição de Patrística Vol. 10: Confissões. Os trechos de Enarrationes in Psalmos foram retirados de Patrística Vol. 9/2 Comentário dos Salmos vol.2: 51-100.Todos os livros que possuem versões em português tiveram seus nomes alterados, mas não a paginação. O presente artigo contém, em parte, conteúdo potencialmente perigoso ao leigo. Recomenda-se efusivamente a leitura de todos os rodapés para melhor compreensão.
Parte I
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Bibliografia citada e/ou recomendada:
Barry Cooper — Eric Voegelin and the Foundations of Modern Political Science
Eric Voegelin — Ensaios Publicados: 1966–1985
Eric Voegelin — História das Idéias Políticas Vol.I: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo
Eric Voegelin — Ordem e História Vol.1: Israel e a Revelação
Eric Voegelin — Ordem e História Vol.4: A Era Ecumênica
Eric Voegelin — Ordem e História Vol.5: Em Busca da Ordem
Elliz Sandoz — A Revolução Voegeliniana: Uma Introdução Biográfica
Eugene Webb — Eric Voegelin: Philosopher of History
Glenn Hughes — Mystery and Myth in the Philosophy of Eric Voegelin
Michael P. Morrissey — Consciousness and Transcendence: The Theology of Eric Voegelin
Mircea Eliade — Mito e Realidade
Mircea Eliade — Mitos, Sonhos e Mistérios
Sto. Agostinho — Comentários aos Salmos Vol. I
Sto. Agostinho — Comentários aos Salmos Vol. II
Sto. Agostinho — Comentários aos Salmos Vol. III
Notas:
[1] Em Busca da Ordem, 23-27. Para o uso brilhante da terminologia voegeliana na interpretação literária, ver James Babin, “Eric Voegelin’s Recovery of the Remembering Story,” Southern Review34 (Spring 1998), 341–66. [N.A.]
[2] Na medida em que procura inserir o homem e a sociedade no contexto de uma realidade maior que, por si, contém regras que devem ser seguiras para que todos estejam em harmonia, a filosofia voegeliana opera um processo de “reversão” da conversão do cosmos em universo que, assim, volta a ser cosmos. Desaparece o puro espaço que assombra pascal e reaparece o todo integrado da cosmologia medieval e anteriores que, hoje, tende a ser chamada de tradicional. Se o homem agora é parte de um todo que por conseguinte é parte dele, não há mais o “lançamento no ser”, não somos meras coisas “jogadas aqui”, mas integrantes de um cosmo que, em termos pascalianos, “nos entende” e nos responde. [N.T]
[3] Em Busca da Ordem, 24; ênfase minha. [N.A.]
[4] O bom entendedor perceberá que “verdade da realidade”, truth of reality, é um termo técnico que espelha o aletheia grego. Verdade e Realidade fundem-se num mesmo símbolo. Buscar a verdade da realidade é buscar a revelação da aletheia. [N.T]
[5] Em Busca da Ordem, 26. [N.A.]
[6] O tema do retorno às origens é largamente examinado por Mircea Eliade em Mitos, Sonhos e Mistérios. [N.T.]
[7] Todos os colchetes por minha conta [N.T.]
[8] Sto. Agostinho – De Vera Religione 39:72; tradução por minha conta. A interiorização do jovem Agostinho, por vezes chamada de “conversão do intelecto”, é narrada em Conf. 7.9-11. [N.A.]
[9] Outras descrições do padrão ascensional nas confissões incluem Kenneth Burke, The Rhetoric of Religion: Studies in Logology (Berkeley, 1970), 123–24 e 41–57; R. D. Crouse. “Recurrens in te unum: The Pattern of St. Augustine’s Confessions,” Studia Patristica 14 (Texte und Untersuchungen, 117), 389–92; e McMahon, Augustine’s Prayerful Ascent, 116–133. [N.A.]
[10] Mundo aqui se refere a “cosmos”, universo ordenado ou, mais propriamente, dimensão material. [N.T.]
[11] Texto apócrifo tomado como parte do cânon bíblico por alguns dos primeiros cristãos. [N.T.]
[12] Estes textos, assim como outros, são citados no Catecismo da Igreja Católica (NewHope, Ky., 1994), cap. 760 p. 200 [N.A.]
[13] Alguns autores entenderam a análise psicológica do tempo erigida por Sto. Agostinho como uma espécie de ancestral da análise fenomenológica: “Embora a teoria psicológica de Agostinho acerca do tempo não seja novidade na filosofia antiga, há algo novo em sua tentativa de ilustrar o sentido do tempo por meio dos conceitos de memória e antecipação. A terminologia de Agostinho está perto da explicação de Husserl do tempo fenomenológico, que está baseada numa distinção entre impressão primeira, retenção e protensão, e que está associada com a determinação temporal de agora, passado e futuro […] Ao contrário do que muitas vezes foi sustentado, Agostinho não oferece qualquer definição filosófica ou teológica do tempo no Livro 11 de Confissões. Ele tenta explicar como temos consciência do tempo e como a sua existência pode ser explicada do ponto de vista psicológico.” Tempo e Criação em Agostinho – Simo Knuuttila in Agostinho – David Vincent Meconi & Eleonore Stump (org.) [N.T.]
[14] É muito curioso como a filosofia hegeliana tende a dizer o mesmo, mas trocando “Igreja” por “estado”. [N.T.]
[15] A atitude voegeliana para com o cristianismo permanecem controversas. Alguns trabalhos recentes sobre o assunto são Michael P. Federici, “Voegelin’s Christian Critics,” Modern Age 36 (1994), 331–40; Gerhart Niemeyer, “Christian Faith and Religion in Eric Voegelin’s Work,” Review of Politics 57 (1995), 91–104; and Michael Franz, “Brothers Under the Skin: Voegelin on the Common Experiential Wellsprings of Spiritual Order and Disorder,” in The Politics of the Soul, 139–161. [N.A.]
[16] É possível dizer que a Igreja é, de fato mas não apenas isto, uma forma de representação do movimento divino-humano, mas tratá-la como mera forma, digo, equipará-la não enquanto experiência de contato com o divino [e aqui o digo fenomenologicamente] mas enquanto apenas um dos vários modos válidos de contato com o divino é esvaziar o Realissimum presente na religião cristã e eivá-la de relativismo, num movimento sub-reptício comparado ao presente quando o relativismo metodológico utilizado na sociologia se torna relativismo moral sctrictu sensu ou, ainda, quando a exclusão de valores meramente metodológica da sociologia se torna ausência de valores real. [N.T.]
[17] Ver “Evangelho e Cultura”, presente em Ensaios Publicados: 1966-1985 172-212 [N.A]
[18] É curioso como a “vida verdadeira” voegeliana é uma versão “transcendente” da “vida autêntica” heideggeriana; enquanto a segunda é um existir para a morte num mundo imanente, a segunda é uma harmonização como o polo transcendente que jaz e nos arrasta para além do mundo em que vivemos. [N.T.]
[19] No sentido de sociedade em geral e não de movimento social como entendemos, digo, como organizações que lutam [ao menos nominalmente] por direitos. A união “na verdade da história” ocorre na medida em que a ação divina manifesta-se no mundo, i.e., na história, e a reposta humana também. [N.T.]
[20] Ver Em Busca da Ordem 28-29 [N.A.]
[21] Aqui podemos ver uma espécie de dissolução simbólica que induz uma falsa equivalência entre as várias experiências religiosas enquanto meras experiências religiosas. Em suma, diz-se que desde que as tomemos simbolicamente [em relação de analogia de atribuição extrínseca imediata] podemos considerá-las verdadeiras ainda que não literalmente, o que abre a porta para que endossemos a experiência qua experiência em detrimento de seu conteúdo real que jaz excluso enquanto mistério, uma redução das espécies ao gênero que torna possível, formalmente, transpor experiências religiosas entre si – mas isso é impossível realmente pois a estrutura das várias experiências religiosas não são equivalentes. Nesse sentido, Voegelin, ao menos na explicação de McMahon, torna-se vulnerável à crítica voegeliana ao positivismo jurídico kelseniano, a saber, da redução da realidade ao método, visto que tal abordagem pode ser usava metodologicamente para que entendamos a experiência religiosa enquanto voltada ao divino, i.e., relação divino-humana, mas nunca enquanto equivalentes entre si. Podemos apontar ainda para um exemplo ilustrativo: remova-se, da experiência cristã, a literalidade da crença na ressurreição de Cristo, e temos a resposta paulina: “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a nossa fé.” (I Cor. 15:14). Ainda que possamos colocar a realidade das narrativas entre parênteses segundo fins heurísticos, não podemos preterir sua realidade sob o risco de deformarmos a experiência do fiel – algo que, infelizmente, acontece muito. [N.T.]
[22] Ao menos segundo a interpretação de McMahon, o que escapou a Voegelin foi precisamente o conteúdo real da experiência sob o símbolo; pode-se dizer, na verdade, que a análise parou no símbolo e, na medida em que a relação de analogia é uma síntese entre semelhança e diferença, exclui-se a diferença e erigiu-se uma falsa univocidade. Ver nota anterior. [N.T.]
[23] [23] Ver Eric Voegelin, A Era Ecumênica, Volume IV de Ordem e História (Baton Rouge, 1974), 272-99 sobre a China e 316-22 sobre a índia. [N.A.]
[24] [24] Voegelin comparou com frequência o componente experiencial da filosofia helênica com o da revelação israelita; de forma mais sucinta, ver What is History? And Other Late Unpublished Writings, Collected Works, Volume 28, editado e introduzido por by Thomas A. Hollweck e Paul Caringella (Baton Rouge, 1990), 186–188, em “The Beginning and the Beyond: A Meditation on Truth,” 173–232. [N.A.]
[25] Ver “Imortalidade: Experiência e Símbolo”, presente em Ensaios Publicados: 1966-1985 52-94, p.78. Há ainda outro ensaio sobre o mesmo tema no mesmo volume, o “Configurações da História”, 95-114, falando da mesma coisa em 105-106. [N.A.]
[26] Ver Jurgen Gebhardt, “Toward the Process of Universal Mankind: The Formation of Voegelin’s Philosophy of History,” in Eric Voegelin’s Thought: A Critical Appraisal, ed. Ellis Sandoz (Durham, 1982). [N.A.]
[27] Como visto na primeira parte da presente tradução, as experiências não apenas não são equivalentes como tal interpretação pode induzir a uma falsa univocidade entre elas. [N.T.]
[28] Trecho digno de deixar hegelianos com um sorriso de orelha a orelha. [N.T.]
[29] Não se mostram, como explicado. [N.T.]
[30] Sou grato a Todd Breyfogle e a Chip Hughes por lerem com cuidado as versões anteriores deste ensaio e por terem me fornecido sugestões muito úteis. [N.A.]
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