Por A.E. Taylor
Tradução e Notas de Helkein Filosofia
O único ponto de interesse filosófico desta doutrina aparece tanto no esquema das “Categorias”, na presença da “substância”, quanto na dos predicáveis, na distinção entre “definição” e “proprium”. De um ponto de vista lógico, não parece que um proprium – ou qualquer nota pertencente aos membros de uma classe e somente a eles – não deva ser considerado seu definiens. Por que devemos presumir a existência de um predicado, v.g., homem, que responda à pergunta: “O que é Sócrates?”; não seria igualmente correto responder: “Um grego” ou “um filósofo”? O filósofo considera certo que nem todas as distinções possíveis entre “tipos” de coisas são subjetivas e/ou arbitrárias. A própria natureza estabeleceu divisões claras e rígidas entre os tipos; nosso raciocínio deve apenas seguí-las.
Conforme Aristóteles, há um abismo, uma diferença de espécie, entre o cavalo e o asno, algo ilustrado pelo fato de a mula (prole de cavalo e asno) não poder se reproduzir; ela é, portanto, um ser imperfeito, uma espécie “monstruosa” cuja existência é contrária à natureza.[1] As diferenças encontradas ao comparar, por exemplo, egípcios e gregos, não constituem uma diferença de “espécie”; chamar Sócrates de “homem” reflete a essência de Sócrates, pois tal afirmação o encaixa no “tipo” ao qual realmente pertence – nisto, sábio, velho, ou filósofo revela apenas alguns de seus atributos.
A crença em tipos “reais” ou “naturais” confere ao problema da definição enorme importância científica. Estamos acostumados a considerar toda a questão da classificação como um mero agrupamento de materiais conforme a especificidade de uma questão em pauta; tendemos a ver qualquer predicado pertencente ao universal referente exclusivamente aos membros de um grupo como fundamento suficiente para uma possível definição de tal grupo. Inclinamo-nos, por isto, a uma concepção “nominalista” de definição, i.e., a considerá-la nada além da expressão do sentido atribuído a uma palavra ou símbolo. Admitimos, conseqüentemente, que pode haver tantas definições para uma classe quanto propriedades distintas ela possuir. Porém, numa filosofia feito a de Aristóteles, onde uma verdadeira classificação não deve ser apenas formalmente satisfatória, mas também estar consoante às verdadeiras divisões entre as espécies estabelecidas pela natureza, a tarefa da ciência torna-se muito mais árdua, pois inclui o fornecimento não apenas de uma definição, mas também à definição das classes que considera referentes às “demarcações” naturais.
É por isto que, no aristotelismo, uma definição verdadeira deve ser sempre per genus et differentia.[2] Ela deve “situar” uma determinada classe mencionando o gênero mais amplo imediatamente acima dela na hierarquia objetiva e, em seguida, enumerar as diferenças específicas através das quais a natureza as distingue das demais pertencentes ao mesmo gênero. Neste sentido, o pensamento evolucionista moderno pode reconduzir-nos à perspectiva aristotélica; a ciência evolucionista contemporânea diverge do aristotelismo num aspecto fundamental: ela vê a diferença entre os tipos não como um dado primordial natural, mas como o resultado de um longo processo de acúmulo de pequenas variações. No entanto, um mundo onde tal processo tenha avançado suficientemente acabará apresentando características essencialmente aristotélicas. Conforme os elos intermediários entre as “espécies” desaparecem — devido à sua menor adaptação em comparação aos extremos que conectam —, o mundo resultante se assemelha cada vez mais a um sistema de espécies separadas por abismos intransponíveis; a evolução propende, progressivamente, para a consolidação de “tipos reais”, definidos pela impossibilidade permanente de cruzamento mútuo, revitalizando a distinção entre uma definição “nominal” e uma “real”. Na ótica evolucionista, uma definição “real” seria a que não apenas especifica características suficientes para diferenciar o grupo em questão de outros, mas também escolhe, para esse propósito, as características referentes ao desenvolvimento histórico pelo qual grupo X se diferenciou, sucessivamente, de outros que compartilham dos mesmos antepassados.
Ainda aprofundaremos nossa compreensão do conceito de “tipo real” conforme examinamos as linhas gerais da Filosofia Primeira.[3] Quanto ao restante da lógica formal aristotélica, abordá-la emos sucintamente. Referente à doutrina das Proposições, Aristóteles opera a conhecida distinção entre quatro tipos de proposição conforme quantidade (universal ou particular) e qualidade (afirmativa ou negativa), abordando as oposições contrárias e contraditórias de modo a fincar os fundamentos para o tratamento de temas em textos introdutórios de lógica formal. Aristóteles também explora, minuciosamente, um tópico hoje freqüentemente omitido em textos básicos: a distinção modal entre proposições problemáticas (x pode ser y), assertóricas (x é y) e necessárias (x deve ser y), assim como a maneira de negá-las. Para o filósofo, a modalidade constitui uma distinção formal, tal a qualidade ou a quantidade, pois crê acredita que a contingência e a necessidade não se referem apenas ao estado do nosso conhecimento, mas a características genuínas e objetivas da ordem natural.
Urge citar, relacionado à doutrina da inferência, a definição aristotélica de silogismo (ou, literalmente, cálculo), nos termos do autor: “O silogismo é uma locução em que, uma vez certas suposições sejam feitas, alguma coisa distinta delas se segue necessariamente devido à mera presença das suposições como tais.”[4] Esta última parte da definição revela um Aristóteles ciente de que o essencial na inferência não é a novidade da conclusão, mas sim sua demonstração. Podemos conhecer, de antemão, a conclusão; mas a função da inferência é conectá-la no conjunto do nosso conhecimento através da demonstração de sua veracidade. Ele também estabelece o axioma fundamental da inferência silogística: “se A é predicado de todo B e B de todo C, A terá necessariamente que ser predicado de todo C.”[5]Adaptada para incluir a negação de B em relação a C, e expressa na linguagem da inclusão de classes, esta proposição se transformou na fórmula medieval: “tudo o que se afirma universalmente, seja de maneira positiva ou negativa, sobre uma classe B, afirma-se igualmente sobre qualquer classe C inteiramente contida em B”; eis o axioma omni et nullo. Para Aristóteles, o silogismo da “primeira figura”, à qual esse princípio é diretamente aplicável, constitui a forma natural e perfeita de inferência. Os silogismos das segunda e terceira figuras requerem um processo de “redução” ou transformação em argumentos equivalentes à primeira figura para se conformarem a esse princípio, sendo, por isso, chamados de “imperfeitos” ou “incompletos”, pois não demonstram conclusiva e claramente seus argumentos – e também por não conseguirem provar conclusão universal afirmativa alguma, e este é precisamente o objetivo visado pela ciência. A listagem dos “modos” das três figuras e a teoria dos métodos para converter as figuras imperfeitas em equivalentes à primeira são desenvolvidos de maneira similar à encontrada em manuais contemporâneos. Por fim, uma “quarta figura” fica descartada por suas formas serem vistas como variações distorcidas daquelas encontradas na primeira.
Indução. – Trataremos sobre o uso da “indução” na filosofia aristotélica sob o título de “Teoria do Conhecimento”. Ela é definida formalmente como “o método de proceder dos fatos particulares para os universais”, com Aristóteles insistindo que suas conclusões só ficam provadas após a exaustão dos particulares. O filósofo oferece o seguinte argumento: “x, y, z são espécies de animais de vida longa; x, y, z são as únicas espécies sem vesícula; logo, todos os animais sem vesícula têm vida longa.”[6] Esta é a “indução por enumeração simples” criticada por Francis Bacon, pois pode ser refutada por um único “exemplum in contrarium” –como um animal desprovido de vesícula cuja vida seja curta. Aristóteles estava ciente de sua “indução” resultar apenas mediante consideração de todos os casos. Na verdade, como demonstrado em seu próprio argumento, uma indução correta não parte de “fatos particulares”, mas do método consistente em argumentar que, se algo vale para cada subclasse de uma maior, então vale para o todo – isto considerando todas as premissas como estritamente universais. Aristóteles não vê, geralmente, a “indução” como uma forma de prova, mas atribui, historicamente, sua popularização na filosofia a Sócrates, que a utilizava em sua procura por resultados universais na ética.
Num argumento típico da doutrina socrática do conhecimento enquanto única coisa importante, ele cita a “indução”: “aquele que entende de navegação é o melhor navegador; quem entende de condução de carruagens é o melhor condutor; desses exemplos, deduzimos universalmente que quem conhece a teoria de algo é o melhor praticante”, onde é claro que nem todos os casos relevantes foram analisados, e, portanto, o raciocínio não constitui uma prova completa. O chamado por Mill de raciocínio de particular para particular, Aristóteles classifica como “argumentar a partir de um exemplo”. Ele ilustra com: “Uma guerra entre Atenas e Tebas será prejudicial, pois a guerra entre Tebas e Fócida foi prejudicial.” Aristóteles explica que a força do argumento depende da suposição implícita de uma proposição universal englobante de todos os casos, como “guerras entre vizinhos são prejudiciais”. Tais exemplos ficam inclusos no rol dos raciocínios retóricos [entimema], pois o orador permite que o público infira, por si, a proposição universal pertinente.
Teoria do conhecimento. – Lidamos aqui, como em toda a filosofia aristotélica, com uma dificuldade inicial e insuperável: Aristóteles enfatiza, freqüentemente, suas diferenças doutrinais com Platão, tendendo a se expressar como se sustentasse uma teoria completamente naturalista e empírica, desprovida de qualquer “luz transcendente”.[7] Contudo, suas conclusões sobre pontos cruciais mal diferem das de Platão, exceto pelo fato de, contrastando fortemente com o aspecto naturalista de sua filosofia, parecerem desvios em direção a um misticismo alógico.[8] Esta “falha” ocorre mais em sua metafísica, psicologia e ética do que na epistemologia, embora não esteja ausente em nenhuma parte de seu pensamento. Aristóteles é, em todos os aspectos, um platônico a contragosto – e é precisamente a este ponto de sua filosofia deve sua influência sobre o pensamento humano.
A doutrina platônica sobre este tema pode ser resumidamente descrita como se segue: existe uma divisão clara entre a percepção sensível e o conhecimento científico. A verdade científica é precisa e definitiva, verdadeira de uma vez por todas, temporalmente invariante, e este é o caráter das proposições vistas por Platão como ideais de uma verdadeira ciência, feito a matemática pura. Este conceito contrasta nitidamente com os ajuizamentos formados a partir do mundo sensível; as cores, sabores e formas dos objetos sensíveis aparecerem de maneira diversa para diferentes observadores e, além disso, mudam constantemente. Nunca podemos afirmar com certeza se duas linhas aparentemente iguais são, de fato, idênticas; é possível que qualquer desigualdade seja demasiado sutil para detecção pelos sentidos. Nenhuma figura desenhada ou observada possui, exatamente, as propriedades atribuídas por um matemático – considerando, por exemplo, um círculo ou um quadrado. Platão conclui, portando, que a “ciência” em sentido rigoroso não pode referir-se ao mundo sensível; ele nos fornece apenas e na melhor da hipóteses, opiniões prováveis.
Os objetos conhecidos com precisão pelos matemáticos não podem ser os sensíveis; devem ser secundum rationem. A função dos modelos e diagramas visíveis, na matemática, não é nos apresentar exemplos, mas apenas aproximações imperfeitas para “lembrar” nossas almas dos objetos conhecidos por uma faculdade intelectiva. A exatidão matemática nunca é plenamente percebida; mas observando linhas cada vez mais precisas, “lembramos” daquela retidão absoluta à qual a percepção sensorial se avizinha.[9] De maneira similar, nas ciências morais, as virtudes não se manifestam perfeitamente no dia-a-dia. Não encontramos homens perfeitamente corajosos ou justos; porém, a constatação de um homem ser mais corajoso e justo que outro nos remete ao conceito de um padrão absoluto de coragem ou justiça. Este padrão jaz implícito na percepção de um indivíduo ser mais perfeito que outro, sendo estes padrões absolutos os verdadeiros focos de nossa atenção quando tentamos definir os termos usados na descrição dos postulados éticos. Este é o aspecto “epistemológico” da célebre teoria das “Ideias” de Platão, cujos pontos essenciais são: (1) a ciência trata, strictu sensu, de objetos e relações pertencentes a um domínio puramente intelectual, excluindo a presença dados sensíveis em sua constituição; (2) dado o caráter desses objetos científicos, a “Ideia”, o “conceito” ou o “universal” não podem derivar de um processo de “abstração” que isole características comuns de experiências sensíveis. Como o particular nunca incorpora o “universal”, senão de maneira aproximada, este não pode ser derivado dos particulares via abstração. Platão postula sua “separação” dos particulares, ou, reformulando, os conceitos puros da ciência são como “limites superiores” em direção aos quais as séries comparativas formadas a partir de dados sensoriais constantemente se aproximam, mas não alcançam.
Aristóteles inicia sua epistemologia distanciando-se de Platão. A ciência não necessita dessas “Ideias” que transcendam a experiência sensorial, como na doutrina platônica; elas são, diz o estagirita, “metáforas poéticas”. O essencial, cientificamente, não é a existência de “uma unidade acima da multiplicidade” (ou seja, conceitos imateriais não concretos no mundo perceptível), mas a possibilidade de aplicação de um termo universal a outros. Isso sugere que o “universal” é apenas o resíduo, adquirido na abstração, das características presentes em cada membro de um grupo — ou seja, desconsiderando as características únicas de alguns membros do grupo e mantendo apenas aquelas compartilhadas por todos. Se Aristóteles tivesse permanecido fiel a tal perspectiva, sua teoria do conhecimento seria puramente empírica. Ele deveria afirmar que, considerando todos os objetos do conhecimento como particulares captados pela percepção sensível, as leis universais da ciência seriam apenas uma forma conveniente de descrever as regularidades observadas no comportamento das coisas sensíveis. No entanto, é evidente que, na matemática pura, não estamos lidando com relações reais entre dados sensoriais ou com suas condutas reais, mas com “casos puros” ou ideais, aos quais o mundo observável se assemelha apenas de maneira aproximada. Portanto, ele também deveria admitir que as proposições matemáticas não são estritamente verdadeiras. Empiristas contemporâneos afirmam isso, mas tal posição é insustentável para alguém que passou vinte anos próximo aos matemáticos da Academia; e, assim, a epistemologia de Aristóteles começa no naturalismo e termina no platonismo.
Podemos sintetizar suas principais posições assim: compreendemos, por ciência, o conhecimento demonstrado; este conhecimento é sempre “mediado”, i.e., é o conhecimento de conclusões derivadas de premissas. Uma verdade cientificamente conhecida não se sustenta isoladamente. A “prova” consiste em demonstrar a conexão entre a verdade denominada conclusão e outras verdades chamadas premissas. A ciência revela o porquê das coisas, encapsulando o princípio aristotélico de que saber é conhecer as coisas por meio de suas causas (ou razões de ser). Num esquema ordenado das verdades científicas, o arranjo ideal é começar pelos princípios mais simples e gerais e, mediante uma sequência de inferências, avançar até proposições mais complexas, cujas razões só se revelam por extensas cadeias dedutivas.[10] Essa é a ordem da dependência lógica, descrita por Aristóteles como um raciocínio parte do “mais cognoscível por natureza”, o simples, ao geralmente “mais familiar para nós”, por ser menos distante da multiplicidade da percepção sensorial, o complexo. Na descoberta, frequentemente devemos inverter este processo, raciocinando desde o “familiar para nós”, os fatos altamente complexos, em direção ao “mais cognoscível por natureza”, os princípios mais simples subjacentes aos fatos.[11]
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Notas
[1] Natureza, em Aristóteles, refere-se à face operativa da essência. Tudo o que opera contrariamente ao fim para o qual foi feito (nisto a natureza é teleológica) é “anti-natural”. [N.T.]
[2] Gênero próximo e diferente específica. [N.T.]
[3] Metafísica. [N.T.]
[4] Analíticos Anteriores 24b20 [N.T.]
[5] Analíticos Anteriores 26a1 [N.T.]
[6] O trecho não aparece nas obras de Aristóteles; parece ser uma paráfrase de Partes do Animais 677a: “Por isso os antigos têm toda a razão em dizer que a ausência de bílis é causa de uma vida longa, tomando em consideração os solípedes e os veados; trata-se realmente de espécies que não têm vesícula e que vivem durante muito tempo. Mais ainda, outros grupos, que, apesar de não constarem dos considerados pelos antigos, também não têm bílis, como o golfinho e o camelo, têm igualmente uma vida longa.” [N.T.]
[7] Não devemos confundir o “empirismo antigo” (sic), atenção às coisas concretas, do empirismo em sentido estrito, presente apenas na modernidade, com o mesmo valendo para o “naturalismo antigo” referente à phsysis que, por sua vez, nada tem que ver com o objeto da física moderna. Taylor decerto exagera e utiliza mal seus termos, uma vez que pode passar a impressão de que Aristóteles fora uma espécie de Locke. [N.T.]
[8] Afirmação gratuita. [N.T.]
[9] Anamnese. [N.T.]
[10] Dedução a partir dos princípios; ordem do ser, própria do raciocínio metafísico. [N.T.]
[11] Indução a partir das coisas; ordem do conhecer, própria do raciocínio epistemológico. [N.T.]
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