Por Edward Feser
Tradução de Maria Mota
Notas e Comentários de Helkein Filosofia
A temperança – ou moderação – é a virtude que rege a fruição dos prazeres sensíveis; como dito por Sto. Tomás de Aquino: “[…] é que os prazeres da comida e da bebida e os prazeres sexuais constituem a matéria própria da temperança.”[1] Tais prazeres refletem nossa natureza corpórea e, assim, entendemos por que os anjos, ao contrário de nós, não precisarem da virtude da temperança e nem manifestarem os vícios que constituem seu oposto. Neste sentido, os prazeres refletem, especificamente, a necessidade de preservação tanto de nós mesmos quanto da espécie; comer e beber existem por conta da primeira e o sexo por conta da segunda – sendo que prazeres associados servem para que sejamos levados à realização dos principais. A temperança é a virtude necessária à realização reta dos prazeres e, em suma, existe para que sejamos atraídos não apenas pelo prazer correto, mas por sua gradação adequada, digo, para que comamos, bebamos e nos relacionemos no tempo e da forma correta de modo que tanto as pessoas quanto a espécie permaneçam existindo.
Não é necessário comentar que é comum que as pessoas busquem, freqüentemente, tais prazeres da forma e no momento errados e, nisto, sejam intemperantes e licenciosos. Contudo, as virtudes são medianias entre os extremos, sendo um o excesso e outro a falta; neste caso, é verdade que a intemperança é o vício referente à overdose de prazer sensível, enquanto aquele referente à sua falta é conhecido como insensibilidade. Posto que a intemperança é, de longe – em especial nos dias de hoje – o vício mais comum, raramente discutimos a respeito da insensibilidade. Sto. Tomás de Aquino resume, da seguinte forma, o motivo de a insensibilidade ser viciosa:
Tudo o que contraria a ordem natural é vicioso. Ora, a natureza ajuntou o prazer às atividades necessárias à vida do homem. Por isso, a ordem natural exige que ele desfrute esses prazeres, enquanto indispensáveis à sua saúde, quer quanto à conservação individual, quer quanto à da espécie. Portanto, pecaria quem evitasse os prazeres sensíveis a ponto de desprezar o que é necessário à conservação da natureza, contrariando assim a ordem natural. Nisso consiste o vício da insensibilidade.
Logo depois, Sto. Tomás comenta que é um erro crer que esquivar-se do prazer seja uma boa forma de evitar o pecado; por outro lado, “para evitar o pecado, é preciso fugir do prazer, não de forma absoluta, mas de modo que não se busque mais do que a necessidade exige.”[2] Entretanto, o dito indica que seja sempre errado fugir de certo tipo de prazer? O que significa a afirmação de que certo tipo de prazer é “necessário”? Abordemos tais questões ordenadamente. Em primeiro lugar, Sto. Tomás reconhecer a ocorrência de casos em que é bom fugir do prazer sensível, como podemos verificar no mesmo artigo:
Entretanto, é preciso levar em conta que, às vezes, é louvável e até necessário abstermo-nos, em vista de algum fim, dos prazeres oriundos dessas atividades. Alguns, por isso, privam-se de certos prazeres da comida, da bebida e do sexo, atendendo à saúde física. Outros assim agem também em função de alguma tarefa, como atletas e soldados, que precisam privar-se de muitos prazeres, para alcançarem melhor desempenho. Da mesma forma, os penitentes, para recuperarem a saúde da alma, praticam a abstinência de tais prazeres, como se estivessem fazendo regime. E os que almejam dedicar-se à contemplação e às coisas de Deus devem abster-se, sobretudo, dos prazeres carnais. Nenhum desses procedimentos, porém, implica o vício da insensibilidade, porque estão de acordo com a razão.
Sto. Tomás comenta que, da mesma forma, abster-se do casamento (e, portanto, do prazer sexual) em prol de um bem maior, feito a devoção completa a Deus, não é apenas legítimo, mas superior ao matrimônio. No entanto, nesses casos, o prazer é preterido por uma situação ou estado sublime; porém, na ausência de tais circunstâncias, a constante esquiva de tais prazeres pode ser viciosa. Suponhamos que uma pessoa casada deseja se abster do sexo em prol da devoção espiritual mesmo sem o consentimento de seu cônjuge; neste caso, Sto. Tomás afirma que seria errado negar o cônjuge, uma vez que a relação sexual é algo normal no escopo da vida sexual e não deve ser evitado mais do que evitamos comer ou beber, i.e., ações da vida em geral. Nisto, como devemos entender a necessidade de “para evitar o pecado, é preciso fugir do prazer, não de forma absoluta, mas de modo que não se busque mais do que a necessidade exige”? Alguns leitores poderiam crer que devemos desfrutar daqueles prazeres inevitáveis – feito aquele que acompanha quaisquer atos, feito comer ou ter relações sexuais – mas esquivarmo-nos daqueles que ultrapassam tal esfera. No entanto, não é isso que se diz. Consideremos um pouco mais as formações tomistas sobre o prazer de comer, beber e da carne segundo o contexto de que seu ponto de vista defende que os prazeres em geral tenham algo que ver com o tato, algo que permite que haja prazeres secundários:
A temperança versa sobre os pra zeres mais intensos, que estão, precipuamente, relacionados à conservação da vida humana, na espécie ou no indivíduo. Nesses prazeres, pode-se enfocar um elemento principal e outro, secundário. O principal é, sem dúvida, o próprio uso do que é necessário, como, por exemplo, a mulher, necessária à conservação da espécie, ou a comida e a bebida, necessárias à conservação do indivíduo. E mesmo esse uso de tais realidades necessárias comporta algum prazer essencial. Mas o elemento secundário, nesses dois casos é tudo, que os torna mais agradáveis. Assim são a beleza e os enfeites da mulher ou o bom sabor e o cheiro do alimento.
Em outras palavras, referindo-nos à comida e à bebida, embora seja notório que os prazeres resultante sejam conhecidos através do tato (por conta de sua textura, temperatura, etc.) há, ainda, os prazeres “secundários” do sabor e do cheiro, de forma alguma inúteis, como explica Sto. Tomás ao dizer que a eles “cabe discernir os sabores que estimulam o prazer da comida, enquanto eles são o sinal de um bom alimento.”[3] Ainda que o prazer sexual envolva principalmente o tato, este é “mais agradável… [pela] beleza e os enfeites da mulher”[4], e assim relaciona-se mais à visão do que ao toque.
Seria absurdo crer que Sto. Tomás pensasse que a temperança permite o usufruto apenas do que é considerado “necessário” enquanto inseparável do comer, do beber e do relacionar-se – assim, por exemplo, que seria moderado apreciar a textura do alimento, mas não seu sabor ou ainda apreciar a relação sexual, mas não à beleza da esposa. Por um lado, tais prazeres, ainda que sejam “secundários”, são naturalmente associados à comida, à bebida e ao sexo tanto quanto aqueles do tato, e a natureza os fez com sabor e cheiro agradáveis da mesma forma que fez com que comer seja bom para que assim comêssemos. A beleza do corpo feminino, não menos do que os prazeres associados à relação sexual, é, obviamente, também parte da natureza e, assim, reúne os homens e as mulheres para que tenham filhos. Por outro lado, Sto. Tomás de Aquino afirma, explicitamente, que a temperança permite o usufruto não apenas do que for imprescindível, mas também daquilo que for menos estrito ou até desnecessário.
[…] deve-se dizer -que as necessidades da vida humana admitem dupla apreciação: uma, toma como necessário aquilo sem o que uma coisa de nenhum modo pode existir, como o alimento para o animal; outra, julga necessário aquilo sem o que uma coisa não pode existir adequadamente. Ora, a temperança leva em conta ambos os critérios. Por isso, segundo o Filósofo, “quem cultiva a temperança, busca os prazeres em vista da sua saúde ou do seu bem-estar”. Quanto a outras coisas, porém, não necessárias, podem elas se apresentar de duas maneiras: algumas são contra a saúde ou o bem-estar e, nesse caso, quem pratica a temperança não as utiliza, absolutamente, porque seria um pecado de intemperança; outras, porém, não se opõem à saúde nem ao bem-estar, podendo se, pois, usá-las, moderadamente, de acordo com as circunstâncias de lugar, tempo e costumes. Daí a observação do Filósofo, no mesmo passo, de que o temperante também deseja “os outros prazeres” não necessários à saúde nem ao bem-estar, “desde que não lhes sejam contrários”.
Assim, os prazeres sensíveis podem ser “necessários” para Sto. Tomás não apenas por sua imprescindibilidade no comer, no beber e no relacionar-se, mas também por “constituírem” certa relação com as coisas. A função da temperança consiste, assim, em fazer com que os prazeres não sejam um “impedimento” ou algo que prejudique a saúde, a boa disposição corporal, mesmo quando desnecessários; basta que consideremos “moderadamente, de acordo com as circunstâncias de lugar, tempo e costumes.”[5] Sto. Tomás de Aquino não considerara que a temperança exigisse certo metodismo nas refeições ou relações sexuais, de forma que qualquer prazer para além do mínimo necessário fosse extirpado enquanto vicioso. Na verdade, desconsiderando aqueles casos em que a pessoa possui apetites desordenados – feito alcoolismo, hipersexualidade e outros –, seria neurótico e espiritualmente insalubre nos afetarmos com estes temas; seria como especular se uma pessoa peca por comer uma fatia extra de bacon ou por ter beijado apaixonadamente o cônjuge. Não se nega, por isso, que haja excessos que configurem vícios. Sto. Tomás observa, por exemplo, que manifestação do vício da gula é evidente naqueles que buscam “alimentos acuradamente preparados […] há os que exageram, comendo em excesso.”[6] Eu diria que o equivalente moderno do que Sto. Tomás quis dizer são as pessoas que se entopem de guloseimas – sempre tratando da comida de modo e embaraçoso e entusiasmado, buscando por “aventuras culinárias” e assim por diante. Outrossim, pessoas não exatamente viciadas em sexo podem desenvolver certa atenção insalubre acerca de relações sexuais; nisto, quando o comer, o beber e o relacionar-se deixam de ser coisas normais da vida e passam a ser obsessões, surge o hedonismo e, assim, o vício da intemperança.
É possível, por vezes, renunciar aos prazeres, não por seu usufruto ser vicioso, mas por um espírito de sacrifício – i.e., não por ajuizarmos que são maus, mas por compreender que são bons, mas é melhor ficar sem eles em prol de um fim mais elevado – tal qual uma penitência para que desenvolvamos nossa autodisciplina. Contudo, supondo que uma pessoa não deseje o ascetismo ou esteja disposta ao hedonismo, como antedito, seria escrupuloso preocupar-se com as minúcias da alimentação, da bebida e das relações conjugais – buscando pecados sutis, seja em si ou nos outros. Aqueles excessivamente desconfiados de tais prazeres são comumente caracterizadas como presunçosas, estraga-prazeres e ranzinza; eu diria que tais características demonstram o vício da insensibilidade: a mania de ver pecados onde não há, e que pode surgir como reação exagerada ao outro vício extremo, a intemperança, seja em si ou nos outros. Contudo, esta não é a única fonte do vício da insensibilidade; algumas pessoas apenas não se interessam por eles e, assim, esquivam-se de um e de outro. Claro que há certa variedade referente aos prazeres relacionados à comida, à bebida e ao sexo, da mesma forma que há entre qualquer traço humano; todavia, da mesma forma que há pessoas com apetites extremamente fortes e, assim, estão propensas à intemperança, há aquelas cujos apetites são muito fracos e, assim, inclinam-se à insensibilidade.
Sejam quais fatores psicológicos relacionados à insensibilidade de uma pessoa, tal é de fato um vício e não mera variação de temperamento, uma vez que pode prejudicar tanto seu portador quanto seus convivas. Charles Reutemann explica, em seu The Thomistic Concept of Pleasure, da seguinte forma, a necessidade humana de prazer:
A supressão consciente dos prazeres, sem que haja alguma forma de sublimação, pode ter efeitos prejudiciais, tendo em conta que a tendência apetitiva tem seu movimento natural frustrado. Nisto, há apenas a atrofia da apetição, mas todo o homem é reduzido a um estado depressivo. Na medida em que as atividades [intelectuais] demandam constantes recursos advindos dos sentidos, deve haver um repouso que alivie o “cansaço da alma”.
Uma vez que o prazer é necessário para curar o “cansaço da alma”, deve ser ainda mais para o corpo, posto que o “cansaço da alma” pode ser atribuído, de certa forma, ao corpo. O corpo exige o prazer por suas razões: enquanto remédio contra a dor e como incentivo à sua própria operação, geralmente trabalhosa. (p.22)
Outrossim, acerca da necessidade do prazer na vida social em geral, escreve:
O prazer contribui muito para o estabelecimento e facilitamento de relações harmoniosas entre os homens, pois, tendo em conta que a sociedade perderia sua integridade caso os homens não respeitassem a manifestassem a verdade entre si, e, assim, o prazer age feio um “lubrificante” para as relações interpessoais. Apreciar a viver agradavelmente com o próximo é considerado, por Sto. Tomás, uma questão de eqüidade natural. (p.23)
Reutemann, neste texto, generaliza o conceito de prazer; consideraremos, aqui, apenas os regidos pela temperança. Para os homens, comer não é meramente alimentar-se, mas uma refeição, que por conseguinte é uma ocasião social, da mesma forma que beber é algo que as pessoas tendem a fazer juntas – num bar, numa festa ou enquanto assistem a um jogo. Precisar, rotineiramente, comer beber sozinho é, comumente, visto como algo triste. Partilhar uma refeição é geralmente a ocasião de promover a paz e a compreensão entre pessoas em desacordo, e tudo isso mostra que os prazeres da comida e da bebida são tipicamente mais intensos quando compartilhados. Sentimos prazer não apenas por conta da refeição, mas pelo fato de que nossa família, amigos ou conhecidos usufruem conosco, por exemplo, de um banquete; a comida e a bebida reforçam, assim, os laços sociais e os bens deles resultantes. Uma pessoa insensível, pouco atraída por tais prazeres tende a ser menos feliz enquanto animal social – e, assim, mais solitária, egocêntrica e incapaz de contribuir ou se beneficiais do círculo social que habita.
Também o prazer sexual, quando bem-ordenado, é inerentemente social na medida em que funciona como via de união entre os cônjuges mediante a mais intensa intimidade e afeto. O vício da insensibilidade se manifesta, neste contexto, quando por conta de uma disposição frígida ou de atos de uma moral prejudicialmente puritana, a pessoa recusa relacionar-se com o conjugue – ou o faz de má-vontade. Uma esposa frustrada e um marido grosseiro podem contribuir para formar um ambiente fértil para o vício da insensibilidade e, quando ele germinar, o sexo se tornará antes um fator de tensão do que de união.
A temperança referente a questões especificamente sexuais é conhecida como virtude da castidade, e não é necessário dizer que, para Sto. Tomás e a Teologia Católica, o princípio essencial afirma que a relação sexual é virtuosa quando praticada por um homem e uma mulher casados – e nunca sob uso de contraceptivos. Nisto, há muito o que dizer sobre o modo de fazer amor conforme a castidade, como expliquei em meu ensaio Em Defesa do Argumento da Faculdade Perversa, incluso no meu livro Ensaios Neoescolásticos; expliquei, lá, a moralidade sexual de forma muito mais precisa do que as executadas neste blog.
Ao abordarem questões referentes à moralidade sexual, os teóricos tomistas afeitos ao direito natural, feito os teólogos morais, têm muito a dizer – e eis algo bastante natural, tendo em conta a extrema depravação de nosso tempo. Pecados referentes ao sexo são comuns na proporção em que o homem moderno é resistente a críticas; entretanto, eis apenas parte da história, pois há também o vício oposto, ainda que mais raro. A felicidade conjugal e o bem da ordem social exigem que se evite, também, o vício da insensibilidade.
Bibliografia recomendada
- Adolphe Gesché – O Corpo, Caminho de Deus
- Francisco Faus – Autodomínio: Elogio da Temperança
- Francisco Faus – A Conquista das Virtudes
- Sto. Tomás de Aquino – Sobre os Prazeres
- Sto. Tomás de Aquino – Suma Teológica Vol.II
- Sto. Afonso de Ligório – Tratado da Castidade
- Roger Scruton – Desejo Sexual: Uma Investigação Filosófica
- Vincent J. Genovesi – Em Busca do Amor: Moralidade Católica e Sexualidade Humana
- Catecismo da Igreja Católica
Caso o leitor tenha aprendido algo com nossos textos, favor considerar uma doação, via PIX [real] ou Lightning Network [Bitcoin], no código QR correspondente. Sua contribuição nos motiva a continuar fornecendo filosofia de forma simples, mas não simplificada.
Notas:
[1] “Et ideo circa delectationes ciborum et potuum, et circa delectationes venereorum, est proprie temperantia.” S. Th. II-II q.141 a.4. Resp. [N.E.]
[2] S. Th. II-II q.142. a.1. ad.3. [N.E.]
[3] S. Th. II-II q.141. a.5. ad.1. [N.E.]
[4] S. Th. II-II q.141. a.5. Resp. [N.E.]
[5] S. Th. II-II q.141. a.6. ad.2. [N.E.]
[6] S. Th. II-II q.148. a.4. Resp.[N.E.]
Posts Relacionados
-
Disputas Metafísicas
Sobre a Natureza da Filosofia Primeira ou Metafísica Por Francisco Suárez S.J. Tradução,…
-
Niilismo, Ética e o Dilema do Bonde
Por Richard Cocks Tradução de Tibério Cláudio de Freitas Notas e comentários de Helkein Filosofia…