Por Edward Feser
Tradução, notas e comentários de Helkein Filosofia
O discurso moderno se refere, freqüentemente, às noções de “pessoa” e “indivíduo” como se fossem algo intercambiáveis; todavia, não é este o caso. Em seu livro Três Reformadores: Lutero, Descartes, Rousseau (especialmente no capítulo 1, secção 3), Jacques Maritain lhes aponta uma série de diferenças importantes e suas respectivas implicações morais e sociais.
A filosofia católica compreende, tradicionalmente, o termo pessoa como substância dotada de intelecto e vontade[1], ambos imateriais. Segue que ser pessoa consiste em ser incorpóreo – totalmente, no caso angélico; parcialmente, no humano. Uma vez que o homem é parcialmente incorpóreo, parte de si independe das forças regentes do mundo material. A individualidade, no caso das substâncias físicas, é consequência antes de seu aspecto corpóreo do que imaterial.[2] A matéria, conforme Sto. Tomás de Aquino, é o princípio de individuação das entidades corpóreas; os seres humanos são submissos às regras do mundo material na medida em que são indivíduos materiais.
No caso de um ser vivo totalmente corpóreo, feito uma planta ou um animal bruto, este jaz subordinado à espécie a que pertence. Tal como qualquer parte subordina-se ao todo que compõe, um ser vivo desta classe realiza-se na medida em que contribui para o bem e a continuidade de seu todo, i.e., sua espécie. Por outro lado, a pessoa, qua incorpórea, é uma totalidade completa em si mesma; seu bem supremo, único no qual pode encontrar sua plenitude, é Deus, enquanto objeto último do desejo (vontade) e da especulação (intelecto).[3]
Na medida em que pensamos os seres humanos enquanto pessoas, concebemos o que lhes é bom em termos de (desde que suas implicações estejam devidamente compreendidas) satisfação intelectual e volitiva; termos teológicos, portanto. Por outro lado, concebendo-as feito indivíduos, sua plenitude será pensada em termos corpóreos – bens materiais, prazer, dor, bem-estar emocional, etc. Entretanto, haverá ainda a tendência em ver seu “bem” como algo sacrificável em prol do todo que compõe. Maritain destaca tais implicações no escopo da filosofia política. O bem comum é mais do que mero agregado de bens individuais. Mas, uma vez que os seres humanos são pessoas, não meros indivíduos, tal bem comum também não deve ser concebido apenas como referente à sociedade como um todo, preterindo suas partes. Pelo contrário, “é, por assim dizer, um bem comum do todo e das partes” (p. 23).
A ordem política é, num certo sentido, mais perfeita do que o indivíduo, visto possuir uma completude impossível a um homem. Por outro lado e aspecto, o ser humano individual é mais perfeito do que a ordem política, pois, enquanto pessoa, é um ordenamento completo sui juris cujo destino reside para além do escopo da política temporal. Segue que a ordem política deve contemplar ambos os fatos e, em particular, reconhecer que o bem comum que ordena o indivíduo inclui facilitar, para cada membro da sociedade, o alcance de sua finalidade última no além. Maritain conclui, assim, que “a cidade humana falha na justiça e peca contra si mesma e contra seus membros se, quando a verdade lhe é suficientemente proposta, se recusa a reconhecer Aquele que é o Caminho da Bem-aventurança” (p. 24).[4]
Tal recusa é, escuso o dito, característica de sociedades modernas, tanto liberais quanto coletivistas, que, sem surpresa, enfatizam mais o indivíduo do que a pessoa, o fazendo na medida em que reconhecem o bem em termos econômicos – e outros aspectos materiais – e não espirituais.
Sociedades liberais, além disto, o fazem quando concebem tais bens corpóreos no sentido de satisfação de preferências individuais e bem-estar emocional. Já sua contraparte coletivista o faz quando considera os seres humanos qua indivíduos como passíveis de sacrifício em prol do bem da espécie a que pertencem (Não é estranho, portanto, que Burke condenasse “a pólvora da individualidade” ao mesmo tempo em que rejeitava o totalitarismo da Revolução Francesa, posto que individualismo e coletivismo enraízam-se no mesmo erro metafísico.)[5]
Maritain cita uma passagem de Reginald Garrigou-Lagrange que resume as implicações morais e espirituais da distinção entre indivíduo e pessoa:
Desenvolver a individualidade é viver a vida egoísta das paixões, fazer de si mesmo o centro de tudo e acabar por ser escravo de mil bens passageiros que nos trazem uma miserável alegria momentânea. A personalidade, pelo contrário, aumenta à medida que a alma se eleva acima do mundo sensível e, pela inteligência e pela vontade, se liga mais estreitamente ao que faz a vida do espírito. Os filósofos viram-no, mas sobretudo os santos compreenderam que o pleno desenvolvimento da nossa pobre personalidade consiste em perdê-la de algum modo na de Deus. (pp. 24-25, citado de Le Sens Commun, de Garrigou-Lagrange)
Entre os filósofos pagãos, talvez nenhum trate deste tema tão claramente quanto Plotino, que contrapõe, na Quinta Enéada, a individualidade e a orientação para Deus: “Como é, então, que as almas se esquecem da divindade que as gerou? Este mal que lhes sobreveio tem a sua fonte na vontade própria… em se tornarem diferentes, em desejarem ser independentes… Usam a sua liberdade para irem numa direção que as afasta da sua origem.” Entre os santos, o mais eloquente é Sto. Agostinho, que distingue “Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de Deus até o desprezo de si – a celeste. Aquela glorifica-se a si própria…” (Cidade de Deus, Livro XIV, cap. 28).[6] A cidade terrena, em sua forma moderna, foi construída, sobretudo, pelo individualismo.
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Bibliografia recomendada:
- Jaroslaw Merecki – Corpo e Transcendência
- José Angel Lombo & Francesco Russo – Antropologia Filosófica: Uma introdução
- Juan Manuel Burgos – Introdução ao Personalismo
- Karol Wojtila – Amor e Responsabilidade
Notas:
[1] “Disso tudo decorre que, se há pessoa tão-somente nas substâncias, e naquelas racionais, e se toda substância é uma natureza, mas não consta nos universais, e, sim, nos indivíduos, a definição que se obtém de pessoa é a seguinte: “substância individual de natureza racional”. Ora, nós designamos por esta definição o que os gregos chamam de hypóstasis. O nome “pessoa” parece tomado de outra fonte, a saber, daquelas máscaras que, nas comédias e tragédias, representavam os homens que interessava representar.” Boécio – Contra Êutiques e Nestório In Opuscula Sacra p.165 [N.T.]
[2] A individuação, na filosofia tomista, ocorre mediante a formatação da estrutura formal na matéria; a forma fornece o princípio qualitativo e a matéria o quantitativo; enquanto a primeira contém o algoritmo que define o que a coisa é, a segunda o individualiza numa entidade determinada. Daí o princípio materia signata quantitate. “[…] a designação da espécie em relação ao gênero é pela forma e, por outro lado, a designação do indivíduo em relação à espécie é pela matéria.” Sto. Tomás de Aquino – O Ente e a Essência p.45 [N.T.]
[3] “La denominación de individuo, por el contrario, es común al hombre y a la bestia, y a la planta, y al microbio y al átomo. Y mientras que la personalidad reposa en la subsistencia del alma humana (subsistencia independiente del cuerpo y comunicada al cuerpo, el cual se sostiene en el ser por la propia subsistencia del alma), la filosofía tomista nos dice que la individualidad, como tal, está fundada en las exigencias propias de la materia, la cual es el principio de individuación porque es principio de división, ya que requiere ocupar una posición y tener una cantidad, de donde lo que está aquí diferirá de lo que está allí. De suene que, como individuos, no somos más que un fragmento de materia, una parte de este universo, distinta, sin duda, pero una parte, un punto de esta inmensa red de fuerzas y de influencias, físicas y cósmicas […] a cuyas leyes estamos sujetos. […] ¿Qué es el individualismo moderno? Un error, un quid pro quo: la exaltación de la individualidad disfrazada de personalidad y el correspondiente envilecimiento de la verdadera personalidad.” [N.T.]
[4] Esta distinción del individuo y de la persona, aplicada a las relaciones entre el hombre y la ciudad, contiene, en el terreno de los principios metafísicos, la solución de muchos problemas sociales. Por una parte —y esto explica el propio ser constitutivo de la vida política—, si el bien común de la ciudad es una cosa harto distinta de la simple reunión de los beneficios privados de cada individuo, también es una cosa diferente del bien de la totalidad considerada aparte: es, por decir-lo así, bien común ao todo y a las partes, por lo tanto, implicar una redistribución para con éstas, consideradas no ya puramente como partes, sino como cosas y como personas. Por otro lado —y esto concierne al fin de la vida política—, si bien la perfección terrena, y temporal del animal racional tiene su campo de realización en la ciudad, que en si es mejor que el individuo, sin embargo, por su propia esencia, la ciudad está obligada a asegurar a sus miembros las condiciones de una vida moral, de una vida propiamente humana, y a no perseguir el bien temporal, que es su objeto inmediato, más que respetando la subordinación esencial de ese bien al bien espiritual y eterno al que esta ordenada toda persona humana, y puesto que de hecho, por la grada del Creador, este bien espiritual y eterno no es el simple fin de la religión natural, sino un fin esencialmente sobrenatural — participar mediante la visión del verdadero gozo de Dios —, la ciudad humana falta a la justicia, peca contra sí misma y contra sus miembros si, habiéndole sido suficientemente propuesta la verdad, rehúye el conocimiento de Aquél que es el camino de la beatitud. [N.T.]
[5] Eric Voegelin considera a idéia moderna de racismo como consequência da destruição da antropologia perpetrada por ideologias feito o liberalismo e o marxismo. Lemos, em A Filosofia Civil de Eric Voegelin (p.264-5): “No que concerne a ideia de raça, seria irrelevante tudo que precedera Darwin ou Lamarck, em particular todas as conclusões da tradição filosófica. Assim, as teorias racistas, desde Klemmt e Gobineau até Rosenberg e a poeira de autores nacional-socialistas, eram o resultado terminal da grotesca destruição da antropologia por ideias liberais e marxistas. O racismo é uma caricatura do liberalismo ao considerar iguais todos os que possuem determinados caracteres somáticos. E é uma caricatura do marxismo, porquanto apresenta as relações biológicas como chave de compreensão da superestrutura espiritual. Os pseudocientistas racistas reduziam o homem a um “puzzle de factores hereditários”; ignorando as investigações clássicas, tomavam-se em proibidores da antropologia: “Quem é simplista nas realidades espirituais não é digno de se ocupar delas”.
Esta crítica da clausura racista prolonga-se no estudo inovador do que Voegelin chamou as religiões políticas, que pro põem transformar o homem e a sociedade em nome de um ideal imanentista, precipitando sociedades inteiras em holocaustos e revoluções nefastas. Este tipo de análise não é um procedimento isolado na politologia contemporânea. Norman Cohn, Igor Chafarevich, Jacob Talmon, Albert Camus, Carl J. Friedrich, Hannah Arendt, Raymond Aron e Alain de Besaçon descobriram um terreno de experiência comum aos credos seculares, tomem estes a forma liberada do liberalismo e do progressismo ou constituem-se em sistemas mais daimoníacos como nacional-socialismo e comunismo. As vagas do que Cohn designou por milenarismo, Camus por rebelião contra transcendência, Talmon por messianismo político, Aron por religião secular, Nadejda Mandelstam por Igreja ao contrário, e Besançon por gnose ideológica desfiguram a relação entre o político e o religioso através de uma prática cuja existência é evidente embora a essência não seja clara. Tais investigações confirmam a identidade das interpretações imanentistas da existência. A visão abusiva da história como a marcha de um grupo eleito em direção à sociedade perfeita; a cosmologia enciclopédica que para tudo encontra respostas de teor providencial ou pseudocientífico; o bloqueio do saber num “Corão” e num grupo de comentários canónicos; a moral tendencialmente maniqueísta; a separação entre os perfeitos militantes e a massa ignara satisfeita com dogmas mínimos; a figura do precursor que anteviu a doutrina; a figura do dirigente iluminado; eis alguns dos traços repetidos ad nauseam em movimentos encabeçados por condottieri, puritanos, jacobinos, carbonários, bolcheviques, fascistas, nacional-socialistas, neoliberais e demais empresários das grandes revoluções que contribuíram para configurar as sociedades ocidentais.” [N.T.]
[6] Tradução conforme A Cidade de Deus vol. II livro IX a XV, 2ª Ed. Por J. Dias Ferreira, para Fundação Calouste Gulbenkian. [N.T.]
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