Por Louis Lavelle
Tradução de Johann Alves
Notas e Comentários de Helkein Filosofia
Onde está o espírito do Senhor, jaz aí a liberdade.
(2 Cor., III, 17)
Parece haver uma origem empírica para a liberdade. Pois [por exemplo] a criança, que não pediu para nascer, faz, inicialmente, parte da natureza e, engolida por ela, encontra-se reduzida à espontaneidade instintiva que a hereditariedade lhe depositou e ao jogo de influências que o meio nunca deixará de exercer sobre ela. No entanto, se a compararmos com aquilo que ela se tornará um dia, ela é apenas uma possibilidade misteriosa cuja atualização ainda não sabemos como ocorrerá. Vemo-la adquirir aos poucos uma representação do espaço e do tempo, que a dominam e que ela própria há, por sua vez, de dominar. O espaço e o tempo, antes caminhos da necessidade, tornar-se-ão os caminhos de sua liberdade. Ela descobrirá, em cada instante e em cada lugar, a eficácia deste ato inespacial e atemporal, que precisa do espaço e do tempo para se realizar. O universo que se fechava sobre ela abrir-se-á e a pluralidade de causas que a arrastavam se tornará uma pluralidade de fins que dela emanam e, pouco a pouco, ela suspenderá o curso da fatalidade que a pressionava por todos os lados para prescrever ao mundo uma nova ordem da qual ela é mestra e criadora.
1. No par formado pela necessidade e pela liberdade, a liberdade é o termo primeiro.
A liberdade e a necessidade formam uma sorte de casal cujos termos só podem ser definidos um em relação ao outro. Assim, a necessidade pode ser definida como a negação da liberdade, ou a liberdade como a negação da necessidade. Ninguém se acredita livre exceto em relação a uma necessidade que possa vinculá-lo e ninguém está vinculado à necessidade alguma, exceto em relação a uma liberdade que poderia libertá-lo.
Mas não é suficiente reconhecer que cada um destes termos pode ser definido, de fato, como a negação do outro. Resta saber se não há um deles que seja primeiro por direito e que possua, em si mesmo, uma verdadeira positividade. Quanto a isto, deve ser feita uma distinção entre a ordem cronológica e a ordem ontológica. Pois é possível, mesmo que a liberdade surja gradualmente da necessidade, que a necessidade a pressuponha e a envolva, como um princípio que a limita e sem o qual ela nada seria. E pode acontecer até mesmo que, onde quer que a liberdade atue, a necessidade seja apenas a fixação dos seus efeitos. Assim, a necessidade seria, em relação à liberdade, antes sua expressão do que o seu limite, a marca não do seu fracasso, mas do seu triunfo. Então a liberdade não teria outras correntes [para] além daquelas que impôs a si mesma.
Contudo, não devemos nos esquecer que o eu não é nem isolado do mundo e nem coextensivo a ele, e que a liberdade que lhe pertence está correlacionada à necessidade pela qual ele se submete à ação deste mundo em que está imerso e que o ultrapassa por todos os lados. Mesmo assim, a liberdade não pode ser reduzida ao poder todo negativo de não ceder à necessidade; pois este poder só tem eficácia se for ele próprio o inverso de um poder todo positivo, que é o de retirar de si mesmo uma ação cuja o eu não é obrigado a se submeter. A negação da necessidade é apenas o efeito e a contraparte de uma iniciativa que o eu reivindica e que ele já começa a exercer.
Como poderia ser de outra forma se a necessidade é sempre hipotética, ou mesmo a testemunha de uma relação condicional, isto é, desta impossibilidade para um ser de bastar a si mesmo, o que o obriga a procurar fora de si a causa que o determina, enquanto que a liberdade é, pelo contrário, sempre categórica, ou seja, exprime em cada ser esta mesma possibilidade de bastar a si mesmo ou de produzir por si mesmo a razão que o faz agir? Portanto, se a insuficiência não tem significado senão como uma negação da suficiência, que é a única em si mesma positiva, a necessidade pressupõe a liberdade e só pode ser definida por meio da sua limitação.
Poderíamos expressar as coisas de forma diferente, dizendo que a liberdade pertence à ordem da ação e a necessidade à ordem da paixão, mas que é a paixão que pressupõe ação, da qual ela nunca deixa de subtrair, enquanto que a ação não pode ser a negação da paixão, à qual ela nunca deixa de acrescentar. Finalmente, pode-se também dizer que negar a necessidade é já uma ação real, de vez que negar a liberdade é apenas uma ação aparente e mesmo uma recusa de ação, de modo que é suficiente, para verificar a necessidade, nada fazer, enquanto que a liberdade só pode ser afirmada ao se assumir o ato de fazer, e mesmo, em direito, de fazer qualquer coisa.
É notável que a liberdade não possa ser definida de outra forma que não um poder de ação: quando dizemos que ela se liberta gradualmente da necessidade em que se encontrava inicialmente confinada, isso significa que existe uma atividade omnipresente e sempre em exercício, mas que permanece exterior a nós, ou seja, que assume para nós o carácter de necessidade enquanto não conseguirmos trazê-la à luz em nossa própria consciência, ou, o que é mesma coisa, assumi-la como nossa.
2. A liberdade é irredutível à espontaneidade da natureza.
Poder-se-ia sustentar que, para que um ser seja livre, basta que suas ações lhe pareçam como sendo apenas a expressão e a consequência de sua natureza. Então o ser[1], estando consciente do que é, mas não das causas que o tornaram assim, considera-se livre onde é capaz de agir de acordo com a sua natureza. Estas causas, porém, só podem ser um objeto do conhecimento e não da consciência: elas não são capazes de impedir a consciência de considerar aquilo que ela é como uma origem antes da qual não havia nada. A consciência de si é um primeiro começo; ela não é a extensão unilinear do universo do conhecimento: na medida em que ela se abre para um futuro ainda por nascer, parece que é ela mesma que o produz.
Todavia, esta é apenas a aparência de liberdade. Nós apenas somos livres no momento em que deixamos de nos confundir com a nossa natureza, quando somos capazes de negá-la e de ir além dela.[2] Pois a nossa própria natureza é-nos dada; é externa, portanto, a este eu que desejamos ser e que reside inteiramente na responsabilidade que ele tem para consigo mesmo. Estas causas a que chamamos causas internas não merecem este nome; elas só são verdadeiramente nossas através do ato que as ratifica e as assume. De nada adianta afirmar que elas estão dentro e não fora de nós. Enquanto elas atuarem por si mesmas e nós formos apenas o seu espetáculo, estão fora de nós. Pois a essência do eu é precisamente separar-se delas para perguntar-se se nega ou consente com a sua ação. Do contrário, seríamos obrigados a considerar livre o vegetal que se desenvolve de acordo com as leis do seu próprio germe, que submete o alimento que transforma e assimila às condições do seu crescimento e que só sofreria um constrangimento quando seu poder de se desenvolver não fosse favorecido, mas atrasado ou interrompido pelas forças que o pressionam por todas as partes.
3. A primazia do ser em relação ao conhecimento
Parece que o ser[3] precede o conhecimento e o fundamenta. Assim, não podemos agir de outra forma senão considerando o conhecimento como uma revelação do ser, de modo que as características do conhecimento parecem reproduzir as próprias características do ser: cabe-nos apenas objetivá-las. Mas podemos nos perguntar se a própria natureza do conhecimento não é nos dar uma imagem invertida do ser.
Pois há apenas conhecimento do realizado e do consumado. Conhecer é apreender o que é dado e o que não pode ser de outra forma; é introduzir, desde o princípio, a necessidade: primeiro, pela presença do fato que aí está, que se impõe a mim e que me é impossível negar; segundo, pelas razões que o fizeram ser aquilo que é, que residem inteiramente nas relações que ele mantém com as outras partes deste mundo dado, de onde o conhecimento me proíbe de sair. O conhecimento tem como objeto um espetáculo, cujos elementos ocupam um lugar determinado; um devir no qual os acontecimentos sucedem-se uns aos outros segundo uma ordem que nos limitamos a observar. É esta situação relativa entre o todo e as partes que cabe ao conhecimento definir. O que é dado na experiência deve, portanto, aparecer como necessário no pensamento, se ele não recusar a sua função. E a função adequada do conhecimento é eliminar, nas coisas mesmas, a ação desta livre iniciativa que lhes permite tornarem-se diferentes do que são.
No entanto, é necessário que o ser seja primeiro em relação ao conhecimento; caso contrário, o conhecimento seria o conhecimento de nada; por outro lado, não podemos nos esquecer que ele é um aspecto do ser que apenas procura abraçar e representar todos os outros: o ser o precede e o envolve; é em si mesmo e não apenas para uma consciência em relação à qual ele seria obrigado a se tornar um fato, um dado ou um objeto. Mas se o ser [sujeito] é incapaz de sair de si mesmo, é porque ele traz dentro de si aquilo que o faz ser [essência], ou porque ele é o próprio ato pelo qual faz a si mesmo[4], o que nos traz de volta à própria definição que demos à liberdade. Já verificamos esta idéia no que se refere ao conhecimento que o sujeito tem de si mesmo; tal conhecimento alcança apenas o fenômeno da liberdade: e este fenômeno, longe de nos dar a liberdade em si mesma, a destrói. O eu só pode, portanto, transformar-se em um objeto de conhecimento ao ser substituído por uma representação que entra imediatamente no tecido da necessidade.[5] Do mundo inteiro pode-se dizer que está assim suspenso a uma liberdade transcendente, e o espetáculo que ele me oferece é apenas uma expressão da minha limitação, que ele continua a superar, mas sempre me obrigando a contemplá-lo de fora.
Deste modo, podemos compreender por que o conhecimento pode ser definido como uma negação do ser, o que acontece em um idealismo que reduz o ser à representação; e por que o ser pode ser definido como uma negação do conhecimento, o que acontece assim que ele é considerado como um “em si” que está além de qualquer representação.[6] Mas as duas negações não se encontram no mesmo nível. Pois, embora o conhecimento pareça nos revelar tudo de positivo que podemos afirmar sobre ele, de sorte que o ser que escapa ao conhecimento [noumeno] é para nós idêntico ao nada, é-nos apenas um nada de conhecimento, enquanto que o ser, ao contrário, é aquela positividade soberana cuja o conhecimento exprime sempre uma forma relativa e limitada [fenômeno].
Portanto, não deveríamos dizer então que, assim como o conhecimento pressupõe o ser que o precede e o fundamenta, a liberdade, na medida em que expressa a possibilidade de ser, o precede e o chama? Mas isto só é verdade para o ser realizado, que em si mesmo só tem significado para o conhecimento. A liberdade não pode ser anterior ao ser, pois não há nada fora dele, nem sequer a possibilidade, uma vez que existe um ser da possibilidade enquanto tal. Deve-se dizer da liberdade, destarte, que ela é o próprio coração ou a própria interioridade do ser.[7]
Deste modo, é verdadeiro dizer que o conhecimento me dá uma imagem inversa do ser, uma vez que ele transforma o ser em si em um para alguém, e da mesma forma, transforma a interioridade em exterioridade, um ato que se coloca em um objeto que é colocado, ou — exprimindo brevemente — a liberdade em necessidade. O ato, ao ser realizado, torna-se para o conhecimento uma consumação semelhante à vida que, no momento em que termina, deixa-nos diante da morte, que a supõe e no entanto a suprime, onde ainda assim a estudamos à vontade, mas em seu oposto.
4. O mistério da liberdade
Não é surpreendente, então, que a liberdade não possa ser conhecida e que ela seja um mistério impenetrável.[8] Mas é deste mistério que emana toda a luz. Querer conhecê-la seria supor que ela é em si mesma um objeto, ou seja, uma coisa já realizada, anterior ao ser que a realiza. No entanto, nunca se deve esquecer que o próprio conhecimento é obra da liberdade: ele só a contradiz em seu efeito, mas não na operação que a produz. O conhecimento, que a todo instante parecia colocar em xeque à liberdade, é a própria prova do seu poder. A liberdade tende a equiparar-se, através dele, a ao universo que antes a oprimia, ela o interioriza e também o recria de certa forma através da imagem ou do conceito. A natureza do conhecimento é expandir a liberdade de modo a lhe permitir reinar sobre o mundo e não apenas sobre a sua própria solidão.
Portanto, a liberdade é como o sol que ilumina tudo no mundo, mas que só pode ser feito um objeto iluminado na medida em que ele próprio se obscurece e se torna um objeto entre os outros.
Isto significa que a liberdade só é estranha ao conhecimento porque ela é a sua causa e não o seu objeto, e se o conhecimento não pode ser virado contra ela para torná-la uma coisa, é porque o ato do conhecimento nos dá a liberdade em seu próprio exercício. Poder-se-ia dizer ainda que a liberdade e o conhecimento são um e outro expressões opostas da mesma unidade do espírito. Pois a liberdade é a unidade de onde procede a multiplicidade, a unidade de uma fonte, enquanto que a unidade do conhecimento é uma unidade que resolve a multiplicidade, mas que só pode ter êxito na abstração de um conceito, onde a fonte deixa de haurir. A primeira forma de unidade reside numa exigência de produção e a segunda numa exigência de redução.
Portanto, não é um argumento contra a liberdade dizer que ela é desconhecida e mesmo incognoscível. Ela está acima do conhecimento, pois a consciência de um ato está acima do conhecimento de um dado. Pode ser tentador dizer que ela é obscura como todas as origens ou como todas as fontes, ou ainda que, sendo ela pura indeterminação, a sua obscuridade é como a escuridão do abismo. Mas se a liberdade escapa a toda a determinação, é porque ela é o princípio de todas elas. A própria consciência desta indeterminação é viva e a ativa, é acompanhada por uma espécie de estremecimento, visto que não podemos evitar rompê-la. E a emoção ela que nos transmite é inseparável da responsabilidade que nos impõe no interior deste Todo do Ser, onde cabe a ela modelar a figura. Ela é a negação do mundo criado precisamente porque nos permite remontar ao ato criativo através da disposição mesma que nos é dada. Ela reside inteiramente naquela passagem sempre iminente da possibilidade à realidade que sentimos depender só de nós.
5. Liberdade e consciência
Se o conhecimento sempre testemunha contra a liberdade, a consciência sempre testemunha em seu favor. Pois o conhecimento a todo momento pressupõe algo já presente e realizado que sou obrigado a introduzir no mundo, isto é, no tempo, e submetê-lo consequentemente à relação de causalidade. Deste modo, argumenta-se contra a liberdade. Mas temos consciência de ser livres; e a consciência, porém, não é um conhecimento, só há consciência de si, ou seja, de um ato que eu realizo, de uma iniciativa que eu exerço e sem a qual não eu estaria consciente de nada, nem mesmo dos estados que me limitam e aos quais sou obrigado a me submeter.
Existe, portanto, entre a consciência e a liberdade, a mais estreita reciprocidade. Não há consciência sem liberdade e nem liberdade sem consciência. Há uma proporcionalidade entre os graus de liberdade e os graus de consciência. Assim que a consciência se obscurece, a liberdade cede e o mecanismo me invade. Assim que a liberdade cede, a consciência torna-se inútil; tudo para mim regressa à noite.
Deste modo, com o nascimento da consciência, começa a liberdade, mas com ela também começa a existência do eu. Antes dela, podemos pensar que a natureza tem o cuidado de reunir todas as condições sem as quais a consciência não encontraria o seu lugar no mundo: mas a consciência surge sempre por um ato criativo e autônomo, como se ela tivesse surgido do nada.
6. A liberdade ou o Eu
Não existe nenhum ato que eu possa reivindicar como meu se não for a liberdade que o realiza, nenhum ser que eu possa assumir como meu se não for o ser que eu livremente me dei.[9] No entanto, eu não escolhi nascer, nem nascer em tal lugar ou em tal tempo, nem [nascer] com o corpo que é meu, nem com aqueles poderes que sinto dentro de mim e que me tornam [propriamente o ] indivíduo que eu sou. Todas estas características, portanto, pertencem à natureza: elas apenas me situam como um objeto entre muitos outros. Elas não podem ser confundidas com o poder que tenho de dizer eu, que só começa a ser exercido quando me desprendo desta natureza que digo ser minha, seja para consentir e me entregar a ela, seja para combatê-la ou reformá-la. E caso se argumente que, em todos os casos, esta natureza me pertence, tal não significa que ela seja eu.[10] Ela é aquela situação privilegiada a que me encontro vinculado, que é necessária para permitir que a liberdade entre em jogo, mas precisamente para utilizá-la ou para libertar-me dela, sempre a ultrapassando.
Tudo o que no eu pertence à natureza e que pode ser chamado de seus poderes, não é nada senão a liberdade que os dispõe; onde quer que seja que ela esteja ausente, o eu se dissipa e se aniquila em sua própria matéria, sem que ela seja capaz de sair do anonimato e sem que haja em lugar algum um centro de referência onde alguém possa dizer eu. O eu nunca pode ser postulado primeiro como um ser cuja liberdade se perguntaria depois. Pois a liberdade não é apenas a liberdade de alguém, mas o ser mesmo deste alguém. Portanto, ela não tem um suporte: qualquer suporte a arruinaria: ela é o eu em si mesmo, mas que não pode ser hipostasiado sem contradição.
Dir-se-á que a conduta é sempre a expressão do carácter? Mas o carácter em si mesmo não é independente da liberdade; ele é uma sorte de depósito que a liberdade nunca deixa de prestar à natureza. Não é surpreendente, portanto, que a liberdade seja ora solidária com ele e ora procure dobrá-lo e ultrapassá-lo. Tal é a razão pela qual, se a liberdade é indivisível, eu posso dizer que sou o meu caráter na medida em que o desejo e que continuo a escolher ser fiel a ele. Eu sou assim — Eis a fórmula pela qual eu atesto que todos os meus atos são sinceros e autênticos, ou seja, que expressam o meu carácter, prolongam-no e dão testemunho de todos os poderes nele acumulados e daqueles que ainda não encontraram a sua atualização. Mas também posso me sentir escravizado pelo meu carácter; pode acontecer que ele me envergonhe e que eu sempre tente ultrapassá-lo. A liberdade vai muito além dele: ela é a própria atividade que o produziu e que nunca deixa de acrescentá-lo e de reformá-lo. Pois ela é a forma da atividade constitutiva de um ser espiritual; e ela só consegue exercer a si mesma, ao fundar a existência do eu, com a condição de extrair deste eu absoluto, desta interioridade pura à qual ela nunca se iguala devido à presença de um corpo ao qual ela é obrigada a se submeter, e de um mundo que nunca deixa de limitá-la e ainda assim provê-la.
Fim da primeira parte
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Artigo publicado no número de novembro-dezembro da revista Jornal de Metafísica [Giornale di Metafisica], Turim, 1949. Este volume foi consagrado ao problema da liberdade.
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Bônus: Recomendações de leitura ao interessado em Louis Lavelle.
por Helkein Filosofia
Comentário: Louis Lavelle pode ser visto como estranho a seu tempo: em um mundo prestes a afundar-se ou no niilismo ou em seus parentes, o filósofo resolveu tomar a direção inversa e fazer metafísica. O desespero, que alimenta tantos tipos de pensamento, nasce da constatação do abismo sob os pés; uma queda constante, um devir cruel, i.e, uma sensação de que nada há senão o caos que, uma vez camuflado por nossas elucubrações, volta do princípio dos tempos para nos pegar. Mas se é assim, o que a filosofia pode fazer? Ela pode fornecer bases fixas e certas, o regramento da realidade que nos mostra que o caos está antes em nossa incapacidade de compreender a ordem. O que o desesperado precisa não é constatar sua miséria e permanecer nela; ele não precisa amar sua miséria, amar seu estado decaído e crer que suportaria, impávido, um destino em que tudo se repetisse eternamente ou que fôssemos meros entes atirados no ser; o que ele [o desesperado] precisa é do instrumento final da filosofia: a disciplina do ser enquanto ser. Não sei se Lavelle pensou assim, mas o dado é que agiu como se tivesse — e talvez também por isso tenha se tornado um autor tão querido. Forneço aqui algumas sugestões de leitura ao interessado naquele que por vezes foi chamado de Platão do sec. XX.
Urge que sigamos a sugestão do autor e leiamos seus escritos populares. Sendo assim, em primeiro lugar, creio que a melhor porta de entrada seja o magnífico A Consciência de si; logo em seguida vem o tão necessário O Mal e o Sofrimento e então talvez um dos livros mais estranhos a seu tempo que saíram da pena de nosso filósofo, O Erro de Narciso. Resta então, quanto aos escritos populares disponíveis em português, a coletânea de artigos Ciência Estética Metafísica, um livro misto, dado que seu conteúdo pode, em linguagem jovem, “ir de zero a 100 muito rápido” e passar de uma simples resenha a um comentário de física quântica. Deixo o Regras da Vida Cotidiana a critério do leitor, dado que o livro é constituído de anotações que o filósofo não pretendia publicar.
Creio que todos os livros sugeridos sejam de leitura livre, i.e., podem ser lidos a qualquer momento sem que exijam muito mais do que atenção redobrada — dado que o autor é famoso por escrever pouco e dizer muito. Mas a coisa muda totalmente de figura quando falamos de A Presença Total, o “livro de divulgação metafísica” [sic] de Lavelle, em que ele busca apresentar um resumo [sic, novamente] de sua imensa Dialética do Eterno Presente, coleção de que gozamos de apenas um mísero volume em português, a saber, Do Ser. Para ambos os citados roga-se que o leitor tenha feito o dever de casa, a saber, conhecer mais ou menos os dois mil anos de filosofia que ocorreram antes de Lavelle começar a escrever suas obras. Há muitas outras obras escritas por Lavelle e principalmente muitas outras que não possuem traduções para o português; por outro lado, creio que as recomendadas aqui darão ao interessado um bom panorama das idéias do filósofo.
Notas:
[1] Os existencialistas em geral e, infelizmente, também Louis Lavelle, tendem a utilizar o vocábulo “ser” quando o correto seria utilizar “sujeito” ou algo referente ao agente em questão. Assim o digo pois, ainda que o sujeito “seja” [seja algo que é, uma entidade], o vocábulo “ser” é, para além de demasiado genérico, específico para “ser enquanto” ser e, nem de longe, identifica-se com o “sujeito” referido no texto; em suma, o sujeito não se identifica com o ser como, por exemplo, tentaram tantos existencialistas, tentando postular que o homem [chamado erroneamente “o ser”] fosse o “único ser por excelência”, numa espécie de subjetivismo pseudo-ontológico que soaria absurdo para um metafísico de “fora da escola”. [N.E.]
[2] Lavelle não fala, aqui, de “natureza” no mesmo sentido utilizado pelos escolásticos, a saber, de operação própria e segundo a essência, mas de nosso gênero enquanto animais e, assim, a frase toma o sentido de libertarmo-nos da necessidade de nossas paixões, necessidade animal, que nos rebaixaria de homens a bestas. Negar essa natureza é elevarmo-nos acima dela e, tomando o exemplo daqueles que fizeram-se eunucos por amor a Deus, rejeitarmos a prisão dos desejos carnais e entregarmo-nos à contemplação. [N.E.]
[3] Como o leitor pode notar, agora Lavelle fala do “ser enquanto ser” em sentido próprio e não com o sentido de “sujeito” ou “agente” apontado no primeiro rodapé. [N.E.]
[4] O “ato pelo qual faz a si mesmo” refere-se às ações que nos moldam ao longo da vida. [N.E.]
[5] Assim, numa explicação de tonalidade kantiana, ao transformarmo-nos em fenômeno para que nos tornemos objeto da ciência, reduzimos nossa essência às suas notas conformáveis ao aparato ou à forma da intuição correspondente e suas leis e, assim, a liberdade fica exclusa da equação. É por conta disso que, no âmbito das ciências, em que reina o fenômeno, não se pode encontrar liberdade alguma: ela jaz em outro plano e, assim, é inacessível ao aparato específico para análise dos fenômenos. Da mesma forma que os materialistas “não encontraram alma alguma” retalhando o corpo com um bisturi e neurocientista algum encontrou a liberdade analisando o movimento das sinapses neuronais, aparato algum voltado a fenômenos poderá encontrá-la. [N.E.]
[6] Este é, em suma, o erro capital do solipsismo. [N.E.]
[7] Sentido metafórico para as possibilidades contidas no interior da estrutura do ser enquanto ser. [N.E.]
[8] Por motivos análogos que Kant considerou a liberdade enquanto incognoscível segundo a razão especulativa, figurando apenas enquanto princípio regulador, ao mesmo tempo em que postulou-a como cognoscível segundo a razão prática por ser a idéia pura que se realiza [ou manifesta seu ser] na prática. [N.E.]
[9] Essa ligação intrínseca entre o indivíduo e seus atos livres é chamado por Olavo de Carvalho de princípio de autoria. Ver Ronald Robson, Conhecimento por Presença p.40-41. [N.E.]
[10] Novamente, Lavelle luta para desvincular o espírito da matéria e afirmar sua natureza liberdade daquela natureza necessitada. [N.E.]
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